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Mostrando postagens de junho, 2025

Nada Mais

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Ela caminhava devagar. O vestido leve, de linho cru, dançava ao ritmo do vento, como se o tempo não a quisesse apressar. Aos olhos de quem olhasse de fora — e quase ninguém olhava — parecia uma mulher comum: cabelos presos sem vaidade, sandálias gastas, um silêncio no rosto. Mas havia algo nela que a distinguia dos demais: a ausência de urgência. Não carregava sacolas nem planos. Não esperava ninguém. Desde que o último amor se desfez como névoa na manhã do outono passado, deixara de contar os dias. Ele partira sem estardalhaço, como tudo o que foi bonito e breve em sua vida. Não houve briga, nem promessa de volta. Apenas um olhar demorado na porta, um adeus sem som. Depois disso, ela acordava cedo, tomava chá de hibisco e ouvia a mesma canção de Gal Costa que embalava seus domingos com a mãe — “o que é que eu vou fazer com essa tal liberdade…”. A cada manhã, algo nela se aquietava um pouco mais. Quando passava pela rua onde morou com o pai, via a casa já demolida e reconstruída em lin...

Antes Do Sol

Ela sempre acordava antes do sol. Não por insônia, nem por obrigação, mas por um tipo de pacto silencioso com a aurora — como se ela quisesse ser a primeira a chegar no novo dia, antes que o mundo o corrompesse com urgências e ruídos. Na penumbra do quarto, o despertador não tocava. Era o corpo dela que sabia a hora. Aos 63 anos, ela tinha perdido a pressa, mas não o tempo. Sabia esperar e sabia ir embora. Aprendera com as estações que tudo chega e tudo parte, inclusive a dor, inclusive a esperança e os sonhos. Ela fazia o café como quem prepara um ritual: devagar, sentindo o aroma subir como uma prece morna. Depois, sentava-se na varanda de sua pequena casa, enrolada num xale antigo, herança de uma avó que falava mais com os olhos do que com palavras. Ali, diante do céu ainda rubro, ela pensava na vida. Não para decifrá-la — isso já não lhe importava tanto — mas para lembrá-la. O amanhecer era seu momento de reencontro: com os que partiram, com as versões dela mesma que ficaram pelo c...

Quando Se Dança a Música

Há um instante na vida em que não se espera mais o ritmo certo. Dança-se a música que toca — mesmo que desafine, mesmo que machuque os pés. Nem sempre ela vem suave. Às vezes, chega como um batuque dissonante, uma melodia cortada pelo vento ou um lamento disfarçado de canção. Mas quando se dança a música, aceita-se o agora. Sem ensaio. Sem garantia de aplausos. Alguns dançam sozinhos, por escolha ou por ausência. Outros carregam lembranças nos braços, dançando com o que foi e com o que ainda doeu. Há quem se mova de olhos fechados, com a coragem de quem não precisa ver para sentir. E há aqueles que, mesmo de corpo cansado, dançam com a alma — porque parar seria morrer devagar. Dançar a música é o contrário da espera. É um gesto de rendição e bravura. É dizer sim ao instante, ainda que o som esteja longe do ideal. É entender que a vida, na maior parte do tempo, não permite escolhas na trilha sonora. Ela apenas toca. E cabe a nós decidirmos: resistir ou dançar. Porque, no fim, não será n...

Deus Dorme

Deus dorme. E, nesse intervalo de sono profundo, os homens erguem muros onde antes havia pontes. Disparam palavras como quem dispara balas, crentes de que vencer um argumento é mais importante do que entender uma dor. Deus dorme – ou talvez apenas feche os olhos para não testemunhar o que fizemos de nós. As cidades se tornaram ilhas. Os vizinhos, estranhos. As crianças, silenciadas por telas. E os adultos...os adultos aprenderam a sorrir sem levantar os olhos, a amar sem presença, a odiar com facilidade. Vivemos conectados, mas cada vez mais sozinhos. Deus dorme enquanto alguém ignora o grito abafado da mulher na escada, enquanto uma idosa morre de fome diante da TV ligada, enquanto um jovem com olhos cheios de sonhos apaga seu próprio nome por não caber em lugar nenhum. Dormimos também. E nesse sono social, deixamos escapar o essencial: o outro. A compaixão virou fraqueza. O cuidado, perda de tempo. O tempo...esse corre tao rápido que esquecemos como se olha nos olhos com calma. Deus ...

Ferida Acesa

Há dores que se calam, e há dores que gritam em silêncio. A dela era das que ardiam — discreta como brasa sob cinza, mas viva, acesa, insubmissa. Não buscava consolo nem cura, tampouco o discurso apaziguador dos que dizem que “o tempo resolve”. Ela sabia que o tempo não resolve — ele apenas reorganiza as gavetas do sentir, desloca os objetos da dor para cantos mais escuros, mas não os desfaz. Carregava aquela ferida como quem carrega um nome antigo, herdado, inevitável. Não era recente, mas tampouco cicatriz. Doía quando menos esperava: num cheiro que passava, numa frase esquecida, num toque que lembrava outros. Era como se alguém soprasse sobre a brasa adormecida, reacendendo o que nunca se apagou. Ela não contava isso a ninguém. Não por vergonha, mas por desconfiança das palavras prontas — as mesmas que encaixam tragédias em molduras baratas de superação. Não queria lições, queria só o direito de arder. Porque há perdas que não pedem conselhos. Pedem espaço. Silêncio. E às vezes, ape...

A Vida Em Preto e Branco

Ela não sabia exatamente quando as cores começaram a desbotar. Talvez tenha sido numa segunda-feira qualquer, dessas que chegam sem perguntar nada e levam tudo que se tem de leveza. Ou talvez tenha sido aos poucos, como se a paleta da existência fosse se esvaziando devagar, um tom por vez — primeiro o vermelho dos desejos, depois o amarelo das risadas, por fim até o verde da esperança. Agora, quando se olhava no espelho, via uma mulher em preto e branco. Não só nas roupas, que haviam perdido o capricho de antes, mas no olhar — especialmente no olhar. Era como se cada gesto, cada escolha, cada manhã, viesse com a mesma pergunta silenciosa: pra quê? Mas ela continuava. Comia, trabalhava, respondia mensagens, trocava o lençol aos domingos. Ainda sabia sorrir em fotografias e fazer comentários educados sobre o tempo. Ninguém percebia que havia se instalado dentro dela uma estação sem cor. O mundo, lá fora, insistia em viver em alta resolução, mas ela seguia como se andasse num filme antigo...

Teto de Vidro

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Marta e Caio estavam juntos havia vinte e sete anos. À primeira vista, eram o retrato tranquilo de um casamento bem-sucedido: uma casa ajeitada, filhos criados, a cumplicidade morna de quem já se conhece nos gestos, nas ausências, nos intervalos. Mas ninguém vê, de fora, o que se esconde por trás das paredes — nem o que vibra silenciosamente sob o teto de vidro. Era uma noite comum. O jantar simples, a louça deixada de lado, o cansaço dividindo espaço com a vontade de adiar o sono. Sentaram-se na varanda, onde o vento morno balançava as cortinas e trazia o cheiro doce das flores do jardim, misturado ao odor mais áspero da terra. — Às vezes eu me pergunto — disse Marta, olhando para o quintal escuro — se a vida que temos é a vida que queríamos mesmo ter. Não havia amargura na voz dela, apenas uma espécie de melancolia resignada, como quem acaricia uma ferida antiga sem intenção de curá-la. Caio demorou a responder. Ele também carregava, dentro dos olhos gastos, perguntas que evitava enc...

Tudo Que Cabe Numa Noite

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A noite começou como qualquer outra: com o som ritmado da chuva no telhado, o cheiro de café requentado na xícara esquecida e um silêncio que só as paredes velhas conheciam. Ana sentou-se na poltrona herdada da mãe, a mesma em que se enroscava para ouvir histórias quando ainda acreditava que o mundo tinha conserto. Vestia um moletom largo, o cabelo preso de qualquer jeito e os pés nus esfriando no chão de madeira. Era sábado, mas o tempo ali dentro não seguia calendários. Ela não esperava por ninguém, mas mesmo assim deixou a porta destrancada. Às nove, veio a ligação. A voz do irmão soava como um eco distante, arrastado, feito lamento. O pai sofrera um novo AVC. Ana não chorou, não perguntou se ele estava consciente, se havia chances. Apenas desligou o telefone e voltou à poltrona. A casa respirava junto com ela, pesada, entrecortada. Às dez, ouviu o estalo da janela mal fechada. O vento trouxe um cheiro antigo, de infância molhada e brincadeiras interrompidas. Ana fechou os olhos e, ...

Esperar o Inesperado

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A mesa estava posta com capricho. Vinho tinto já respirando na taça, risotos divididos em travessas de cerâmica artesanal e velas acesas — não por romantismo, mas por um toque de leveza que Teresa insistia em manter, mesmo nos dias mais prosaicos. Cloé e Filipi chegaram com aquele atraso elegante de quem mora perto demais, mas quer parecer vindo de longe. — A culpa foi dele, claro — disse Cloé, rindo, ao entregar o vinho que trazia. — Filipi acha que tempo é um conceito subjetivo. — E é — respondeu ele, depositando um beijo distraído no ombro da mulher. — Mas o arroz queimando é sempre um conceito bem objetivo. Augusto, já à mesa, riu com um ar cúmplice. Teresa apenas revirou os olhos. Havia nesse casal algo de encantador e perigoso, como um espetáculo de circo feito sem rede de proteção. Entre o primeiro e o segundo prato, a conversa começou a escorregar do trivial para o que realmente importava — como sempre acontece entre pessoas que já não têm mais paciência para fingir que a vida ...

Me Surpreenda!

  Durante décadas, Dona Candinha foi sinônimo de ordem e previsibilidade naquele edifício antigo da Rua Almirante Lobo. Morava no 702, o mesmo apartamento onde criou os filhos, enterrou o marido — no silêncio — e, aos poucos, foi enterrando a si mesma em rotinas bem dobradas. Todas as manhãs, às sete em ponto, erguia as persianas da sala, colocava Dalva de Oliveira no toca-discos, e deixava o café coando, mesmo que ninguém mais aparecesse para bebê-lo. A vizinhança a considerava uma senhora “respeitável”. Palavrinha perigosa essa — “respeitável” — quase sempre usada para conter, nunca para libertar. Ninguém imaginava que, por trás dos vestidos neutros, havia lembranças que mordiam e vontades guardadas feito louça boa em armário alto. Candinha não era amarga. Era apenas contida. Aprendeu cedo que mulher boa era a que esperava. E ela esperou tanto que esqueceu o que, de fato, esperava. Até que uma noite, ao revirar uma antiga caixa de sapatos, encontrou uma carta que nunca en...

Mais Uma Semana Sem Ele

Era segunda-feira. Mais uma. Ela olhou o calendário como quem encara um inimigo antigo: o tempo. Ele não parava, não perguntava, não acolhia. Apenas seguia — teimoso, indiferente, inteiro. E ela, quebrada, tentando sobreviver a mais uma semana sem ele. Na cidade, tudo parecia funcionar normalmente: ônibus passando, gente apressada, o pão quente na padaria da esquina, a vizinha falando alto no telefone. O mundo não parou porque ele se foi. Só ela ficou suspensa, como uma fotografia antiga num porta-retrato esquecido. Fazia dias que não ouvia seu nome em voz alta. Ninguém ousava. Mas dentro dela, era repetido em silêncio: a cada respiração mais curta, a cada tentativa falha de dormir sem lembrá-lo, a cada manhã que nascia sem o café do seu sorriso. Ele era abrigo. E era também vento — daqueles que empurram pra frente. Com ele, ela tinha vontades: de mudar, de melhorar, de rir alto, de aprender a cozinhar pratos difíceis, de usar vestidos coloridos. Sem ele, a vida parecia desenha...

Um Mundo Para Cada Estupidez

Há quem diga que a estupidez é democrática — não escolhe classe, credo, cargo ou cor. Instala-se sorrateiramente nas decisões apressadas, nos julgamentos fáceis, nas certezas absolutas que brotam como erva daninha em terrenos baldios da escuta e da empatia. E talvez a humanidade tenha, ao longo da história, criado um mundo para cada tipo de estupidez — como se fosse preciso ambientar, organizar, decorar os cômodos do próprio fracasso. Na política, a estupidez se disfarça de convicção cega. Defende bandeiras sem entender o tecido, marcha por ideias que não sabe de onde vieram, elege salvadores que não sabem sequer salvar a própria alma. Reage com ódio ao que não compreende, porque pensar dá trabalho. E assim, empurra o tempo para trás — como se a História não estivesse cansada de avisar que certos caminhos já terminaram em ruínas. Nos relacionamentos, ela se apresenta com mais sutileza. Usa a roupa do orgulho, do controle, da expectativa irreal. É a estupidez de não escutar o outro,...

Então, Acordei Assim

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Era sempre igual: o despertador tocava, o sol ameaçava entrar pela fresta da cortina, e ela já estava de cara amarrada. Nem precisava abrir os olhos – o mau humor chegava primeiro, ocupando o corpo inteiro como uma névoa teimosa. Glaucia levantava, resmungava, arrastava os chinelos pela casa. O café da manhã, preparado com carinho por Jorge, era recebido com um olhar vago, quase impaciente. Ele, por sua vez, mantinha a esperança. Todo santo dia. - Bom dia, Glaucia! - Pra quem? – ela respondia, no automático, há trinta anos. Era uma rotina. Como escovar os dentes ou trancar a porta. Como escovar os dentes ou trancar a porta. Ele já tentara de tudo, – café com canela, pão com poesia, até dançar um samba na cozinha certa vez – só ganhou um suspiro mais longo, talvez mais cansado que bravo. Talvez. Com o tempo, Jorge foi se conformando. Dizia para os amigos que Glaucia era uma rosa de inverno, – linda, mas cheia de espinhos antes das dez da manhã. Ela mesma não explicava. Nunca quis jus...

O Segundo Nascimento de Dona Maria

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Dona Maria sempre viveu para os seus. Para o marido, para os filhos, para o cheiro do café coado na hora certa e para os panos de prato estendidos ao sol como bandeiras de cuidado. Mas não era por submissão nem dever aprendido — era por gosto, por afeto tecido em pequenos gestos. Tinha orgulho da casa arrumada, da comida quente, da mesa sempre posta com alguma flor do quintal. Na pequena Salto Alegre, com seus morros altos e seu povo de fala mansa, vivia-se com o tempo dos galos e dos sinos. Até o dia em que o tempo parou. A notícia veio como um tapa: o morro cedeu. Um desmoronamento inesperado, brutal. O marido de Dona Maria, assim como tantos outros, não voltou para casa. Nem para a janta, nem para o amanhã. O que voltou foi o silêncio. E a ausência — essa que não faz barulho, mas desmonta tudo por dentro. Durante meses, ela andou pela casa como se pisasse em cacos invisíveis. Os panos de prato ficaram sem cor, o café perdeu o cheiro, as flores do quintal secaram antes de chegar à me...

Vasculhando a Alma

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Jussara era daquelas que falavam com as mãos, com os olhos, ... os pés cruzados que balançavam inquietos... era pura energia e vigor. Dava risada alto, gesticulava tanto que, às vezes, derrubava copos e certezas. Conhecida no bairro pelo jeito despachado, pela franqueza que cortava como navalha e pela mania de chamar todo mundo de “meu bem”, ela era presença. Presença cheia. Cheia de histórias, de vozes dentro dela, de empolgação para as manhãs de domingo e até para filas de banco. Jussara era vida, pura vida. Mas um dia, sem avisar, a casa ficou silenciosa. Começou com ausências pequenas. Deixou de ir à feira no sábado, depois parou de responder mensagens no grupo das amigas. Cancelou um café, dois, depois parou de prometer encontros. Quem passava pela calçada já não ouvia sua voz alta cantando samba ou conversando com a vizinha do portão ao lado. Jussara se recolheu. Como quem volta para um lugar escuro e desconhecido dentro de si. E lá ficou. Ninguém sabia ao certo o que tinha acon...

Um Homem Que Toda Mulher Devolve - Trilogia

PARTE UM  A Vingança As amigas de Toninha estavam indignadas com a cretinice de Nino. — O que ele fez não se faz nem com uma cadela! — diziam, entre xícaras de café e revoltas acumuladas. Tinham certeza: Toninha precisava ser vingada. Enquanto isso, ela seguia em tratamento médico, enfrentando uma depressão profunda — efeito colateral direto da "cachorrada" do ex-namorido. Desde muito jovem, Toninha trabalhava em salão de beleza. Com esforço e talento, construiu uma clientela fiel e conseguiu abrir seu próprio espaço. Foi lá que conheceu Nino — o homem que, pouco a pouco, destruiria sua autoestima e a levaria à falência. — Esse cachorro sem-vergonha... quem ele pensa que é? — desabafava uma amiga, trincando os dentes. — Ah, ele é o gostoso! Todas caem por ele, e ele sabe... se aproveita! De fato, Nino era sedução em carne e osso: alto, cheiroso, charmoso e com aquele sorriso cínico que prometia tudo — e não entregava nada. Era conhecido na praça como destruidor de corações. C...

Entre o Espelho e o Abismo

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Ela passava quase despercebida. Rosto delicado, olhar sempre baixo, vestidos que cobriam mais do que o necessário e uma educação de gestos contidos, como quem aprendeu a se desculpar por existir antes mesmo de ousar desejar. Chamava-se Branca— nome breve, translúcido. E era assim que todos a viam: clara, previsível, quase santa. A moça do escritório que nunca levantava a voz, nunca saía depois do expediente, nunca comentava sobre homens. A que levava marmita. A que lia romances no ônibus, sem fones de ouvido. Mas Branca guardava segredos. Não daqueles que se escondem no armário — eram segredos que caminhavam com ela. Viviam entre as dobras da roupa íntima de algodão, entre os sonhos que ela nunca contava, entre as palavras que morriam antes de atravessarem a garganta. À noite, deitada em seu quarto escuro, Branca não era mais Branca. Era brasa. Pensava nos homens que cruzavam seu caminho. No porteiro de braços tatuados. No colega de trabalho que mastigava devagar. No motorista do apli...

Um Pequeno Milagre

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Dona Lia acordou antes das seis, como de costume. Era um hábito antigo, herdado dos tempos em que os filhos ainda corriam pela casa e o café precisava estar pronto antes da primeira mochila ser fechada. Mas agora a casa era silenciosa. E fria. Só que naquela manhã, diferente das outras, ela percebeu algo estranho ao virar na cama: não havia dor. Nenhuma fisgada nas costas, nenhum peso nos ombros. Apenas o estranhamento. Um corpo que não reclamava. Fechou os olhos outra vez e esperou que voltasse, como quem teme ter esquecido o casaco antes de sair no inverno. Mas não voltou. Era real: estava inteira. Levantou-se devagar, com receio de que a mágica se desmanchasse. Caminhou até a cozinha, acendeu a luz amarelada e preparou o café forte como gostava. Enquanto esperava o cheiro subir, espiou pela janela: a vizinha do andar de cima já tentava equilibrar três sacolas, um guarda-chuva e o filho pequeno ao mesmo tempo. Dona Lia abriu a porta antes que ela pensasse em pedir. — Deixa que eu seg...

Todo o Dia é Dia...

  Todo dia é dia. Parece óbvio, mas não é. Nem todo mundo acorda disposto a habitar o próprio tempo. Há dias em que a gente só sobrevive, outros em que se inventa, e ainda aqueles em que simplesmente... resiste. Mas o mundo não pergunta se estamos prontos. Ele gira, exige, muda as regras no meio do jogo. E é nesse giro que se esconde a urgência silenciosa: reinventar-se. Reinvenção não tem idade. É um verbo que não se curva diante dos calendários. É movimento íntimo. Para alguns, começa ao acordar e calçar sapatos que não doem. Para outros, se revela ao aprender a usar um aplicativo novo, ao aceitar que os filhos já sabem mais do que a gente, ao admitir que certas coisas não cabem mais – nem no corpo, nem no coração. Ser jovem, hoje, é quase uma performance: adaptar-se rápido, engolir novidades, trocar de pele antes mesmo de entender a anterior. Mas quem vive o “entardecer da vida” conhece outro ritmo. Reinventar-se ali não é correr, é escolher. Não é gritar por espaço, é escul...

O Que Cabe Numa Noite

  Cabe uma ausência que pesa como pedra no peito. Cabe a lembrança de um nome sussurrado em silêncio, com medo de acordar a dor. Cabe um reencontro — ainda que só em sonho. Cabe um arrependimento atravessado, uma mensagem que ficou por mandar, um beijo que não se deu. Cabe o eco de passos antigos, de promessas feitas no escuro, onde tudo parecia possível. Numa noite cabe o mundo inteiro, se a alma estiver aberta. Cabe um suspiro demorado, a pele arrepiada pelo vento que entra pela fresta da janela, e uma solidão tão íntima que até parece companhia. Cabe a coragem de um começo e o cansaço de um fim. Cabe o sorriso que se guarda de alguém que foi embora — e também aquele medo secreto de que ninguém mais venha. Cabe um corpo que se estende sozinho na cama grande demais. Cabe um gato ronronando no peito, um livro entreaberto, a última taça de vinho, a canção que insiste em repetir a lembrança. Cabe um mundo que só se revela quando a cidade adormece: o vizinho que chora baixo, o...

Que a Gente Vença o Hoje

Nem sempre é sobre grandes batalhas. Às vezes, é só sobre conseguir levantar da cama depois de uma noite mal dormida, com a cabeça cheia e a alma meio desalinhada. Sobre preparar o café com a luz apagada, porque ainda não se está pronto para encarar o dia, nem a própria cara no espelho. A vida, em sua versão mais realista, não se parece com os discursos de motivação que viralizam por aí. Ela tem mais cara de fila de banco, de e-mail acumulado, de boleto vencido, de reunião que cansa antes mesmo de começar. A vida, essa que vivemos todos os dias, é feita de cansaços acumulados, pequenas alegrias, engasgos não ditos e um bocado de resiliência escondida atrás de sorrisos que a gente veste pra continuar. Há dias em que o tapete parece ser puxado de propósito. E não por um vilão de novela, mas por alguém sorridente do outro lado da mesa, por quem devia estar do seu lado ou, pior, por quem nem sabe o quanto o feriu. Às vezes, o leão não ruge — ele se disfarça de obrigação, de cobrança ve...

Um Pequeno Milagre

Ela acordou e, por um instante raro, não sentiu dor. Não havia pontadas nos joelhos, nem o latejar insistente nas têmporas. O corpo, aquele velho companheiro de tantas lutas, parecia finalmente em paz com o próprio peso. Abriu os olhos devagar, como quem teme quebrar o encanto. Era apenas um começo de dia, como tantos outros. Mas ali, naquele instante miúdo, morava um pequeno milagre. Milagre não é, necessariamente, o que desafia as leis da física. Às vezes, é só o que rompe silenciosamente a rotina do sofrimento. Um intervalo de respiro. Um gole de café sem pressa. Um olhar que diz: "estou aqui, mesmo que o mundo esteja desabando". Milagre, talvez, seja viver sem esperar que o universo nos agradeça por sermos bons. Continuar gentis, mesmo quando ninguém nota. Estender a mão, mesmo quando não há plateia. Ela não esperava aplausos por ajudar a vizinha com as sacolas, nem desejava reconhecimento por responder com paciência àquela mensagem atravessada. Fazia “porque sim.” Po...

À Flor da Pele

Há dias em que o arrepio chega antes mesmo do sol. Antes do café, do espelho, da rua. Um arrepio que não vem do frio, mas da falta. Daquele espaço que ninguém vê, mas que insiste em abrir caminho entre as costelas, como se ali morasse uma ausência que aprendeu a respirar sozinha. A saudade tem esse dom silencioso: não avisa, não pede licença. Escorrega por dentro feito vento atravessando uma fresta. E quando a gente percebe, já está com os olhos marejados diante de uma xícara esquecida, de uma camisa que ainda guarda um cheiro que a memória se recusa a deixar morrer. É curioso como o tempo passa — e passa mesmo —, mas certas presenças não sabem obedecer à lógica dos relógios. Elas ficam. Às vezes num canto da casa, às vezes numa música, às vezes no jeito como a luz invade a sala nas manhãs de quarta-feira. Ficam nos detalhes. Ficam em nós. E então, todo dia, ao abrir os olhos, algo pulsa à flor da pele. Como se a pele soubesse, antes da razão, que falta uma parte. E nessa falta, ...

Queria Poder Voar Pra Te Encontrar

Queria, de verdade, poder voar. Não pelas alturas, nem pela paisagem vista do céu. Queria voar porque caminhar até você já não é mais possível — não há estrada, ponte ou estação que me leve. O que nos separa não é o espaço, é o tempo. E contra ele, não há trem que chegue, nem asa que aguente. Queria poder voar, não como os pássaros, mas como os sonhos que atravessam noites insones e se alojam no peito da gente. Voar por dentro do silêncio, do que não foi dito, do que restou suspenso entre a última mensagem e o último olhar. Porque há ausências que doem menos quando a gente fecha os olhos e inventa asas. Às vezes, no meio da tarde, paro tudo. Só pra te imaginar ali, encostado na varanda, distraído, como se ainda fosse ontem. E então penso: se eu pudesse, voaria. Rasgaria a tarde, romperia o vento, só pra sentar ao teu lado por cinco minutos. Só pra dizer que ainda me lembro do teu riso torto e do jeito como chamava meu nome quando fingia estar bravo. Voar pra te encontrar seria, t...

Amor Compartilhado

Não era um amor de cinema. Não havia promessas sob a chuva, juras sussurradas ao pôr do sol ou dramaticidades à flor da pele. Mas havia café passado na hora certa, coberta dividida nas madrugadas frias e um silêncio confortável entre dois corpos que já não precisavam se provar nada. O amor compartilhado não vinha com fogos, mas com pequenos acenos diários. Ele estava no olhar cúmplice diante de uma piada interna, na toalha deixada estendida para o outro usar, no saber o que o outro gosta no pão — com manteiga, sem geleia, morno. Era quase invisível aos olhos alheios, mas, para quem vivia ali, era vasto como oceano em dia calmo. Esse tipo de amor não tenta salvar ninguém. Não se impõe como remédio, nem se disfarça de destino. Ele se oferece, apenas. Com sua leveza que não é desimportância, com sua constância que não é tédio. É presença que escolhe ficar, mesmo quando tudo à volta convida a partir. Amor compartilhado é o que acontece quando duas solidões se reconhecem e, em vez de ...

Quando o Coração Se Parte

Ninguém ouviu o barulho. Não houve estalo, nem queda, nem grito. Só o silêncio. O tipo de silêncio que ocupa a casa inteira quando o coração de alguém se parte — porque ele não estoura como vidro, não range como madeira velha, não racha como louça. Ele simplesmente se cala. E permanece assim. Naquela manhã, Beatriz levantou como de costume. Desligou o despertador com a mesma mão que, horas antes, repousava sobre o peito tentando amparar uma dor que ainda não tinha nome. Fez café. Passou o pano na mesa. Ajeitou as almofadas do sofá. E depois sentou. Só isso. Sentou e ficou. Os olhos abertos, fixos no nada que, naquela hora, ocupava todo o mundo. Havia meses que o amor escapava pelas frestas. Primeiro, nos gestos. Depois, nas palavras. Por fim, nos olhares — que antes se procuravam e agora se desviavam como quem teme se reconhecer no espelho do outro. Ela sabia. Ele também. Mas fingiam. Por medo, talvez. Ou cansaço. Fingiam que ainda havia algo além da convivência e do nome escrito e...

O Nosso Amor a Gente Inventa

O nosso amor não mora no mesmo lugar que os amores comuns. Ele não precisa de agenda, de testemunha, de fotografia em porta-retrato. O nosso amor — esse que a gente inventa — nasce do que falta e se alimenta do que ainda pode ser. Há dias em que uma parede nos separa. Em outros, é um oceano. Às vezes, nem sabemos dizer o que está no meio — talvez seja só o tempo, talvez o medo, talvez o mundo inteiro entre o céu e a terra. Mas, ainda assim, a gente se encontra. A ausência, em nós, não é buraco: é ponte. E a saudade não é pena, é poesia. Enquanto tantos medem o amor por presenças físicas, nós contamos pelos silêncios compartilhados, pelas mensagens não enviadas mas sentidas, pelos pensamentos que chegam antes da fala. Você não está aqui. E, no entanto, está. Está quando o vento toca a cortina e eu lembro do teu riso. Está quando ouço uma música que nunca ouvimos juntos, mas que juraria ter a tua marca. Está na hora exata em que meu peito aperta, e eu sei — com uma certeza sem ex...

Queria Escutar Teus Passos

Há sons que ficam. E há silêncios que doem mais do que qualquer grito. Durante anos, bastava ouvir teus passos no corredor para o mundo se aquietar. A madeira do chão rangia só pra mim, como quem anuncia o retorno de algo sagrado. Eram compassos de um afeto que eu reconhecia de olhos fechados — teus passos eram melodia aos meus ouvidos, trilha sonora de uma rotina que, apesar de simples, carregava sentido. Sabia quando era você pelo ritmo. Tua pressa leve, teu sapato cansado, tua chegada. Não importava se o dia tinha sido longo, se havia mágoas ou silêncios pendurados entre nós — o som dos teus passos atravessava qualquer ruído e me dizia: "estou aqui." E eu acreditava. Mas agora... O corredor segue lá. O mesmo chão, o mesmo tapete, as mesmas molduras tortas nas paredes. Só que teus passos não vêm mais. E o que antes era espera, virou ausência. Uma ausência que não bate à porta, não faz drama, mas que invade, instala-se e se acomoda como poeira fina nos cantos da casa....