Um Pequeno Milagre

Dona Lia acordou antes das seis, como de costume. Era um hábito antigo, herdado dos tempos em que os filhos ainda corriam pela casa e o café precisava estar pronto antes da primeira mochila ser fechada. Mas agora a casa era silenciosa. E fria. Só que naquela manhã, diferente das outras, ela percebeu algo estranho ao virar na cama: não havia dor.

Nenhuma fisgada nas costas, nenhum peso nos ombros. Apenas o estranhamento. Um corpo que não reclamava. Fechou os olhos outra vez e esperou que voltasse, como quem teme ter esquecido o casaco antes de sair no inverno. Mas não voltou. Era real: estava inteira.

Levantou-se devagar, com receio de que a mágica se desmanchasse. Caminhou até a cozinha, acendeu a luz amarelada e preparou o café forte como gostava. Enquanto esperava o cheiro subir, espiou pela janela: a vizinha do andar de cima já tentava equilibrar três sacolas, um guarda-chuva e o filho pequeno ao mesmo tempo. Dona Lia abriu a porta antes que ela pensasse em pedir.

— Deixa que eu seguro o portão pra ti, minha filha — disse, com aquele sorriso de quem não tem pressa.

A vizinha agradeceu, sem jeito. Não estavam acostumadas com gentilezas tão cedo. Nem tão desinteressadas.

— Como a senhora tá hoje?

Lia pensou em responder com a lista de medicações, a pressão que vive oscilando, o joelho que falha às vezes. Mas não. Disse apenas:

— Hoje acordei sem dor. E isso já é um milagre.

A moça sorriu, como quem recebe uma bênção involuntária. E seguiu seu caminho.

De volta à cozinha, Dona Lia se sentou com sua xícara de café e pensou que talvez fosse isso o segredo: seguir sem esperar nada em troca. Ser boa sem plateia. Estender a mão sem cálculo. Não por religiosidade, obrigação ou necessidade de aplauso. Mas porque, um dia, entendeu que viver com leveza era o que ainda a mantinha em pé.

Na solidão dos seus setenta e poucos anos, ela ainda escrevia bilhetes para os netos, oferecia bolo às crianças do prédio, escutava com atenção as histórias que já sabia de cor. Não pedia agradecimento, não guardava ressentimentos. Só fazia, e pronto. Um pouco porque era sua natureza, outro tanto porque aprendeu que tudo o que se planta com doçura um dia volta, nem que seja só como um dia sem dor.

E ali, naquela cozinha silenciosa, com o sol tímido da manhã atravessando a cortina de renda, ela sentiu de novo:
Era um pequeno milagre.
Simples.
Silencioso.
E só dela.




Silvia Marchiori Buss

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