Quando o Coração Se Parte
Ninguém ouviu o barulho. Não houve estalo, nem queda, nem grito. Só o silêncio. O tipo de silêncio que ocupa a casa inteira quando o coração de alguém se parte — porque ele não estoura como vidro, não range como madeira velha, não racha como louça. Ele simplesmente se cala. E permanece assim.
Naquela manhã, Beatriz
levantou como de costume. Desligou o despertador com a mesma mão que, horas
antes, repousava sobre o peito tentando amparar uma dor que ainda não tinha
nome. Fez café. Passou o pano na mesa. Ajeitou as almofadas do sofá. E depois sentou.
Só isso. Sentou e ficou. Os olhos abertos, fixos no nada que, naquela hora,
ocupava todo o mundo.
Havia meses que o amor
escapava pelas frestas. Primeiro, nos gestos. Depois, nas palavras. Por fim,
nos olhares — que antes se procuravam e agora se desviavam como quem teme se
reconhecer no espelho do outro. Ela sabia. Ele também. Mas fingiam. Por medo,
talvez. Ou cansaço. Fingiam que ainda havia algo além da convivência e do nome
escrito em duas contas conjuntas.
Na noite anterior, tudo se
calou de vez. Ele não gritou. Ela não chorou. Não houve porta batida, malas
feitas, nem cena de filme. Só a frase — dita com uma doçura desconcertante:
— Eu não sei mais como ficar.
Beatriz também não soube como
pedir que ele ficasse.
Quando a porta se fechou atrás
dele, ela não correu. Não se jogou ao chão. Apenas respirou — longa e
demoradamente — como se tivesse que aprender a fazer isso sozinha dali em
diante.
Agora, ali na sala, o mundo
parecia igual. A xícara no mesmo lugar. O relógio marcando a mesma hora de
sempre. A cidade acordando lá fora como se nada tivesse acontecido. E talvez
fosse isso o mais difícil: a vida seguir normalmente enquanto, dentro dela,
tudo havia parado.
Ela se levantou por instinto,
abriu a janela. O dia estava cinza. Mas não era o tipo de cinza que anuncia
tempestade — era um cinza morno, contínuo, desses que se espalham por dentro da
gente e fazem parecer que nunca mais haverá sol. Olhou para o céu e não pediu
nada. Nem respostas, nem consolo. Só deixou que o ar entrasse.
Na rua, uma criança passou
correndo atrás de uma bola. Um vizinho acenou. Uma senhora varria folhas da
calçada. E ela, sem saber por que, respondeu ao aceno, seguiu com os olhos a
criança, escutou o som da vassoura riscando o chão.
E ficou ali, de pé, com o
corpo inteiro e o coração em pedaços. Sem planos. Sem certezas. Apenas sentindo
o tempo passar como quem toca, de leve, uma cicatriz ainda aberta.
Porque há dores que não se
resolvem. Apenas passam a fazer parte da mobília.
E talvez — só talvez — um dia,
ela não se assuste tanto com o som do próprio silêncio.
Silvia Marchiori Buss
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