Um Pequeno Milagre
Ela acordou e, por um instante raro, não sentiu dor. Não havia pontadas nos joelhos, nem o latejar insistente nas têmporas. O corpo, aquele velho companheiro de tantas lutas, parecia finalmente em paz com o próprio peso. Abriu os olhos devagar, como quem teme quebrar o encanto. Era apenas um começo de dia, como tantos outros. Mas ali, naquele instante miúdo, morava um pequeno milagre.
Milagre não é,
necessariamente, o que desafia as leis da física. Às vezes, é só o que rompe
silenciosamente a rotina do sofrimento. Um intervalo de respiro. Um gole de
café sem pressa. Um olhar que diz: "estou aqui, mesmo que o mundo esteja
desabando". Milagre, talvez, seja viver sem esperar que o universo nos
agradeça por sermos bons. Continuar gentis, mesmo quando ninguém nota. Estender
a mão, mesmo quando não há plateia.
Ela não esperava aplausos por
ajudar a vizinha com as sacolas, nem desejava reconhecimento por responder com
paciência àquela mensagem atravessada. Fazia “porque sim.” Porque um dia
aprendeu — talvez com a avó, talvez com os livros, talvez no susto da vida —
que a gentileza também pode ser uma escolha teimosa diante do caos.
O mundo, ali fora, continuava
igual: buzinas, filas, pressa. Mas dentro dela, por algumas horas, havia uma
clareira. Um campo aberto onde cabia um pouco de paz. Não era preciso anunciar.
Não precisava postar. Nem prometer repetir no dia seguinte. Era só hoje. Só
agora. Um pequeno milagre.
E assim seguiu. Pé ante pé,
como quem não quer assustar o silêncio. Vivendo como quem entende que estar
vivo, às vezes, é só isso: sentir-se inteiro por dentro, mesmo que ninguém
veja.
Gentil sem holofote. Boa sem
contrato. Amiga sem moeda de troca.
Um dia comum, sem dor.
Um pequeno milagre.
Silvia Marchiori Buss
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