Ferida Acesa

Há dores que se calam, e há dores que gritam em silêncio. A dela era das que ardiam — discreta como brasa sob cinza, mas viva, acesa, insubmissa. Não buscava consolo nem cura, tampouco o discurso apaziguador dos que dizem que “o tempo resolve”. Ela sabia que o tempo não resolve — ele apenas reorganiza as gavetas do sentir, desloca os objetos da dor para cantos mais escuros, mas não os desfaz.

Carregava aquela ferida como quem carrega um nome antigo, herdado, inevitável. Não era recente, mas tampouco cicatriz. Doía quando menos esperava: num cheiro que passava, numa frase esquecida, num toque que lembrava outros. Era como se alguém soprasse sobre a brasa adormecida, reacendendo o que nunca se apagou.

Ela não contava isso a ninguém. Não por vergonha, mas por desconfiança das palavras prontas — as mesmas que encaixam tragédias em molduras baratas de superação. Não queria lições, queria só o direito de arder. Porque há perdas que não pedem conselhos. Pedem espaço. Silêncio. E às vezes, apenas respeito.

Se você a visse na rua, talvez não notasse nada. O cabelo preso, os passos firmes, os olhos que sustentavam os próprios abismos. E, no entanto, ali dentro, uma memória — ou muitas — pulsavam com a força dos dias que não se repetem.

Ela aprendeu a conviver com essa ferida acesa. Não como fraqueza, mas como parte do que a mantinha humana. Porque sentir é, apesar de tudo, um tipo de resistência. E não há nada mais inteiro do que alguém que se recusa a apagar o que o mundo manda esquecer.

Ela segue. Com dor, sim. Mas com dignidade. Porque não é preciso curar tudo para continuar andando. Às vezes, basta saber que ainda se sente. E isso, por si só, já é uma forma de estar viva.


Silvia Marchiori Buss

 

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