Me Surpreenda!

 Durante décadas, Dona Candinha foi sinônimo de ordem e previsibilidade naquele edifício antigo da Rua Almirante Lobo. Morava no 702, o mesmo apartamento onde criou os filhos, enterrou o marido — no silêncio — e, aos poucos, foi enterrando a si mesma em rotinas bem dobradas.

Todas as manhãs, às sete em ponto, erguia as persianas da sala, colocava Dalva de Oliveira no toca-discos, e deixava o café coando, mesmo que ninguém mais aparecesse para bebê-lo.

A vizinhança a considerava uma senhora “respeitável”. Palavrinha perigosa essa — “respeitável” — quase sempre usada para conter, nunca para libertar. Ninguém imaginava que, por trás dos vestidos neutros, havia lembranças que mordiam e vontades guardadas feito louça boa em armário alto.

Candinha não era amarga. Era apenas contida. Aprendeu cedo que mulher boa era a que esperava. E ela esperou tanto que esqueceu o que, de fato, esperava.

Até que uma noite, ao revirar uma antiga caixa de sapatos, encontrou uma carta que nunca enviou. Era de 1973. Endereçada a um certo Álvaro — o único homem que a fizera rir com o corpo todo. A carta terminava com uma frase rabiscada no rodapé: "Se um dia criar coragem, me surpreenda."

Ficou olhando aquela frase como quem encara um espelho que mente menos. Fez um café forte, sentou-se na poltrona da sala e, sem pedir permissão à lucidez, decidiu partir.

No dia seguinte, fechou a porta com duas voltas de chave. Não deixou aviso para os filhos. Apenas um bilhete curto colado na porta:

"Deixei as plantas com a vizinha do 402. Estou bem. Preciso ver o que ainda vive em mim."

Em menos de uma semana, Candinha já era outra — embora os cabelos brancos denunciassem o tempo, havia um viço novo no olhar. Comprou um chapéu colorido, um maiô de bolinhas, alugou um quarto numa pensão com varanda e cheiro de jasmim, em um lugar chamado Barra do Silêncio. Não sabia bem o que fazia ali, mas pela primeira vez em anos, não precisava saber.

Passava as manhãs sentada na areia, observando casais jovens brigarem por bobagens e crianças se lambuzarem de sal. À tarde, escrevia cartas que não pretendia enviar. À noite, ouvia música ao vivo num bar à beira-mar.

Foi ali que reencontrou Álvaro. Ou melhor: foi ali que se reencontrou diante dele.

Ele também havia envelhecido. Também carregava a expressão de quem perdeu mais do que ganhou. Mas quando a viu cantarolar baixinho a letra de um bolero esquecido, se aproximou sem hesitar.

— Não é possível... Candinha?
Ela sorriu com o canto da boca.
— Esperei tanto tempo por essa surpresa... que precisei vir buscá-la eu mesma.

 

Dizem que ficaram por lá. Que todas as manhãs caminham juntos até a padaria. Que trocam jornais antigos por histórias recentes. Que às vezes dançam sem música, só pelo costume do corpo lembrar.

E dizem também que Dona Candinha, agora, aprendeu a viver sem pressa, como se cada dia fosse uma carta que, enfim, decidiu abrir.

No apartamento 702, onde por tanto tempo tudo esteve no lugar, há agora apenas poeira, saudade e um bilhete desbotado no chão do corredor. O bilhete termina assim:

"Estou indo. E não me esperem igual. Porque, pela primeira vez, não sou o que deixei para trás."

Silvia Marchiori Buss

 

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