Então, Acordei Assim
Era sempre igual: o despertador tocava, o sol ameaçava entrar pela fresta da cortina, e ela já estava de cara amarrada. Nem precisava abrir os olhos – o mau humor chegava primeiro, ocupando o corpo inteiro como uma névoa teimosa.
Glaucia levantava, resmungava, arrastava os chinelos pela casa. O café da manhã, preparado com carinho por Jorge, era recebido com um olhar vago, quase impaciente. Ele, por sua vez, mantinha a esperança. Todo santo dia.
- Bom dia, Glaucia!
- Pra quem? – ela respondia, no automático, há trinta anos.
Era uma rotina. Como escovar os dentes ou trancar a porta. Como escovar os dentes ou trancar a porta. Ele já tentara de tudo, – café com canela, pão com poesia, até dançar um samba na cozinha certa vez – só ganhou um suspiro mais longo, talvez mais cansado que bravo. Talvez.
Com o tempo, Jorge foi se conformando. Dizia para os amigos que Glaucia era uma rosa de inverno, – linda, mas cheia de espinhos antes das dez da manhã. Ela mesma não explicava. Nunca quis justificar. Apenas dizia:
- Acordei assim. Pronto.
Mas, nas últimas semanas, havia algo diferente. Não no humor – ele seguia áspero. Mas nos silêncios. Glaucia olhava no café com uma lentidão estranha. Às vezes, parecia que queria dizer algo, mas desistia no meio do caminho.
Naquela quinta-feira nublada, Glaucia acordou antes do despertador. Não levantou. Ficou deitada, ouvindo os barulhos da casa. O tilintar das xícaras, o rádio baixinho na cozinha, a colher raspando o fundo da panela de leite. Jorge fazia tudo como sempre, com aquela leveza irritante de quem acredita que o mundo é bom ao acordar.
E então veio a culpa. Não por ser como era. Mas por nunca ter tentado entender por que era assim. Aquela pergunta, a mesma de tantos anos, ecoou dentro dela – “por que tanto mau humor?” – e dessa vez, ela não fugiu da resposta.
Lembrou da infância, dos gritos matinais da mãe, do cheiro de café queimado e nervoso, das brigas antes mesmo do sol nascer. Lembrou do pai que só falava de contas, da pressa, do peso do dia que nem havia começado. Acordar, para ela, era sempre o início de uma guerra. Como se o mundo a atacasse antes mesmo de respirar fundo.
Jorge apareceu na porta do quarto, com a xícara nas mãos e um sorriso cansado.
- Hoje você não vai levantar resmungando?
Glaucia sentou devagar. Os olhos um pouco mais macios, mas ainda guardando espinhos.
- Sabe, Jorge... eu não sei quando começou, mas acordar virou um susto pra mim. Todo dia.
Ele não respondeu de imediato. Apenas se sentou ao lado dela, com cuidado, como quem não quer espantar o raro momento de abertura.
- Trinta anos, Glaucia. Eu nunca entendi. Mas também nunca desisti de tentar.
Ela sorriu, breve.
- Eu achava que se explicasse, ia parecer fraca. Ou pior, ia ter que mudar. E mudar, às vezes, é mais difícil do que suportar a própria teimosia.
- E agora?
Ela suspirou. Olhou pra xícara nas mãos dele. Pegou-a, bebeu um gole e disse:
- Agora... eu só queria que você soubesse que não é com você. Nunca foi. É só um jeito de acordar que ainda não desaprendi.
Ele concordou.
- Posso continuar trazendo café?
- Pode. Mas agora... sem dançar samba, por favor.
Eles riram juntos. Pela primeira vez em anos, o riso veio antes das dez da manhã.
E naquele dia, Glaucia não disse “acordei assim” com amargura, mas com uma pontinha de humor, como quem finalmente entende de onde veio – e pra onde pode ir.
Glaucia levantava, resmungava, arrastava os chinelos pela casa. O café da manhã, preparado com carinho por Jorge, era recebido com um olhar vago, quase impaciente. Ele, por sua vez, mantinha a esperança. Todo santo dia.
- Bom dia, Glaucia!
- Pra quem? – ela respondia, no automático, há trinta anos.
Era uma rotina. Como escovar os dentes ou trancar a porta. Como escovar os dentes ou trancar a porta. Ele já tentara de tudo, – café com canela, pão com poesia, até dançar um samba na cozinha certa vez – só ganhou um suspiro mais longo, talvez mais cansado que bravo. Talvez.
Com o tempo, Jorge foi se conformando. Dizia para os amigos que Glaucia era uma rosa de inverno, – linda, mas cheia de espinhos antes das dez da manhã. Ela mesma não explicava. Nunca quis justificar. Apenas dizia:
- Acordei assim. Pronto.
Mas, nas últimas semanas, havia algo diferente. Não no humor – ele seguia áspero. Mas nos silêncios. Glaucia olhava no café com uma lentidão estranha. Às vezes, parecia que queria dizer algo, mas desistia no meio do caminho.
Naquela quinta-feira nublada, Glaucia acordou antes do despertador. Não levantou. Ficou deitada, ouvindo os barulhos da casa. O tilintar das xícaras, o rádio baixinho na cozinha, a colher raspando o fundo da panela de leite. Jorge fazia tudo como sempre, com aquela leveza irritante de quem acredita que o mundo é bom ao acordar.
E então veio a culpa. Não por ser como era. Mas por nunca ter tentado entender por que era assim. Aquela pergunta, a mesma de tantos anos, ecoou dentro dela – “por que tanto mau humor?” – e dessa vez, ela não fugiu da resposta.
Lembrou da infância, dos gritos matinais da mãe, do cheiro de café queimado e nervoso, das brigas antes mesmo do sol nascer. Lembrou do pai que só falava de contas, da pressa, do peso do dia que nem havia começado. Acordar, para ela, era sempre o início de uma guerra. Como se o mundo a atacasse antes mesmo de respirar fundo.
Jorge apareceu na porta do quarto, com a xícara nas mãos e um sorriso cansado.
- Hoje você não vai levantar resmungando?
Glaucia sentou devagar. Os olhos um pouco mais macios, mas ainda guardando espinhos.
- Sabe, Jorge... eu não sei quando começou, mas acordar virou um susto pra mim. Todo dia.
Ele não respondeu de imediato. Apenas se sentou ao lado dela, com cuidado, como quem não quer espantar o raro momento de abertura.
- Trinta anos, Glaucia. Eu nunca entendi. Mas também nunca desisti de tentar.
Ela sorriu, breve.
- Eu achava que se explicasse, ia parecer fraca. Ou pior, ia ter que mudar. E mudar, às vezes, é mais difícil do que suportar a própria teimosia.
- E agora?
Ela suspirou. Olhou pra xícara nas mãos dele. Pegou-a, bebeu um gole e disse:
- Agora... eu só queria que você soubesse que não é com você. Nunca foi. É só um jeito de acordar que ainda não desaprendi.
Ele concordou.
- Posso continuar trazendo café?
- Pode. Mas agora... sem dançar samba, por favor.
Eles riram juntos. Pela primeira vez em anos, o riso veio antes das dez da manhã.
E naquele dia, Glaucia não disse “acordei assim” com amargura, mas com uma pontinha de humor, como quem finalmente entende de onde veio – e pra onde pode ir.
Silvia Marchiori Buss
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