Vasculhando a Alma


Jussara era daquelas que falavam com as mãos, com os olhos, ... os pés cruzados que balançavam inquietos... era pura energia e vigor. Dava risada alto, gesticulava tanto que, às vezes, derrubava copos e certezas. Conhecida no bairro pelo jeito despachado, pela franqueza que cortava como navalha e pela mania de chamar todo mundo de “meu bem”, ela era presença. Presença cheia. Cheia de histórias, de vozes dentro dela, de empolgação para as manhãs de domingo e até para filas de banco. Jussara era vida, pura vida.

Mas um dia, sem avisar, a casa ficou silenciosa.

Começou com ausências pequenas. Deixou de ir à feira no sábado, depois parou de responder mensagens no grupo das amigas. Cancelou um café, dois, depois parou de prometer encontros. Quem passava pela calçada já não ouvia sua voz alta cantando samba ou conversando com a vizinha do portão ao lado. Jussara se recolheu. Como quem volta para um lugar escuro e desconhecido dentro de si. E lá ficou.

Ninguém sabia ao certo o que tinha acontecido. Alguns diziam que foi a morte do irmão mais novo, que ela amava como filho. Outros falavam de um diagnóstico. Ou de um amor que, depois de velho, resolveu partir. Mas não importava exatamente o motivo – o que importava era o vazio que ela deixou. Dentro de casa, Jussara andava devagar, como se os próprios passos a incomodassem. Tirou os espelhos da parede, trocou as flores por vasos vazios e deixou o rádio desligado. Não chorava, não gritava, não implorava por consolo. Apenas parou. Parou de inventar receitas, de pintar as unhas, de contar histórias. Parou até de rir dos próprios erros.

Às vezes, abria as gavetas, não para procurar algo, mas como quem vasculha a alma. Olhava velhas fotografias com estranhamento quase infantil. Tocava nos objetos como se fossem de outra vida. Lia cartas antigas e depois rasgava – não era por raiva, mas por desalento. Como se já não fizesse sentido.

As pessoas ainda passavam por ela na rua e diziam “força, Jussara”, como se a força fosse coisa que se arruma numa prateleira. Ela sorria um sorriso educado, mas não respondia mais “meu bem”. O vocabulário dela havia encolhido, como quem decide que falar cansa mais do que calar.

Jussara continuava viva, mas já não era presença. Era sombra de uma presença antiga. Não buscava luz, tampouco fugia da escuridão.

Apenas caminhava por entre os dias como quem espera alguma coisa que talvez nunca venha – ou que, vindo, já não mudaria nada.

E assim, entre uma tarde calada e outra mais silenciosa ainda, ela seguia: com a casa cheia de silêncios, as mãos sem gestos, e a alma cheia de gavetas abertas sendo vasculhadas.




Silvia Marchiori Buss

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