Tudo Que Cabe Numa Noite

A noite começou como qualquer outra: com o som ritmado da chuva no telhado, o cheiro de café requentado na xícara esquecida e um silêncio que só as paredes velhas conheciam. Ana sentou-se na poltrona herdada da mãe, a mesma em que se enroscava para ouvir histórias quando ainda acreditava que o mundo tinha conserto. Vestia um moletom largo, o cabelo preso de qualquer jeito e os pés nus esfriando no chão de madeira. Era sábado, mas o tempo ali dentro não seguia calendários.

Ela não esperava por ninguém, mas mesmo assim deixou a porta destrancada.

Às nove, veio a ligação. A voz do irmão soava como um eco distante, arrastado, feito lamento. O pai sofrera um novo AVC. Ana não chorou, não perguntou se ele estava consciente, se havia chances. Apenas desligou o telefone e voltou à poltrona. A casa respirava junto com ela, pesada, entrecortada.

Às dez, ouviu o estalo da janela mal fechada. O vento trouxe um cheiro antigo, de infância molhada e brincadeiras interrompidas. Ana fechou os olhos e, por um instante, foi menina outra vez. Viu a mãe cozinhando, o pai rindo alto na sala, o irmão pequeno com os joelhos ralados. Tudo aquilo que já não existia, mas ainda doía.

Às onze, ele bateu na porta. Davi, o homem que ela amou como quem se atira no escuro. Tinham se separado há dois invernos e meio, sem gritos nem traições, apenas pelo silêncio que os engoliu. Estava molhado, com os olhos vermelhos e as mãos vazias. Não disse nada. Apenas entrou. Ela não perguntou o motivo. Sentaram-se frente a frente, dividindo o mesmo silêncio de antes — só que agora doía menos. Ou mais. Era difícil medir.

À meia noite e meia, o telefone tocou outra vez. O pai partira. Sem dor, disseram. Como se a ausência viesse com atestado de leveza.

Ana desligou devagar. Olhou para Davi e não precisou explicar. Ele segurou sua mão como quem segura um espelho trincado: com cuidado, sabendo que pode se cortar. Ela chorou sem som, e ele ficou. A noite inteira.

Às três da manhã, fizeram café. Falaram dos pais, dos sonhos abandonados, do medo de envelhecer sozinha. Riram de coisas que não tinham graça. Lembraram do cachorro que enterraram juntos. Ela tocou o rosto dele com os dedos frios, como se buscasse um mapa antigo. Ele não recuou.

Às cinco, o céu começou a clarear. Não fizeram promessas. Não voltaram a ser casal. Mas havia algo ali, suspenso, tênue como névoa: a presença, que às vezes vale mais que o amor.

Davi partiu pouco antes das seis, sem dizer até logo. Ela o viu desaparecer pela rua encharcada, sem saber se ele voltaria. E voltou à poltrona — não por hábito, mas por exaustão.

Lá fora, o dia amanhecia em silêncio.
Lá dentro, nada havia mudado.
Mas algo nela… havia cedido.

 



Silvia Marchiori Buss

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A porta entreaberta

No tempo certo

Avatares de nós