Entre o Espelho e o Abismo
Ela passava quase despercebida. Rosto delicado, olhar sempre baixo, vestidos que cobriam mais do que o necessário e uma educação de gestos contidos, como quem aprendeu a se desculpar por existir antes mesmo de ousar desejar.
Chamava-se Branca— nome breve, translúcido. E era assim que todos a viam: clara, previsível, quase santa. A moça do escritório que nunca levantava a voz, nunca saía depois do expediente, nunca comentava sobre homens. A que levava marmita. A que lia romances no ônibus, sem fones de ouvido.
Mas Branca guardava segredos. Não daqueles que se escondem no armário — eram segredos que caminhavam com ela. Viviam entre as dobras da roupa íntima de algodão, entre os sonhos que ela nunca contava, entre as palavras que morriam antes de atravessarem a garganta.
À noite, deitada em seu quarto escuro, Branca não era mais Branca. Era brasa.
Pensava nos homens que cruzavam seu caminho. No porteiro de braços tatuados. No colega de trabalho que mastigava devagar. No motorista do aplicativo com voz grave. Pensava neles não com culpa, mas com fome. Tinha fantasias que vinham como febre: suadas, desordenadas, viscerais. Imaginava ser puxada pela cintura, beijada contra uma parede fria, sussurrada no ouvido com uma voz que dissesse o que fazer — e ela faria.
Durante o dia, controlava cada passo. À noite, era uma mulher de joelhos diante da própria vontade. Não rezava. Gemia em silêncio.
Certa tarde de sábado, saiu com um vestido preto, colado ao corpo, algo que não usava desde antes de... antes de se apagar. Cabelo solto, batom vermelho. Entrou numa livraria do centro só para provar a si mesma que ainda podia ser notada. E foi. Sentiu olhares. Um em especial a percorreu como um toque demorado. Era um homem sozinho na seção de fotografia. Ela cruzou por ele. Olhou rápido, mas foi suficiente. Um calor subiu do ventre ao pescoço.
Não trocou uma palavra. Nem precisava. Era só uma dança de possibilidade.
Naquela noite, deitada, ela se despiu lentamente. Mas, ao contrário de todas as outras vezes, não fechou os olhos para imaginar: manteve-os abertos, cravados no espelho do guarda-roupa.
Viu-se inteira e sem pudores contidos.
E sussurrou para o reflexo:
— Você não é recatada. Nunca foi. Só estava com medo.
A mão que antes tremia, agora guiava. O corpo que antes se escondia, agora se exibia para si. Não havia plateia. Apenas a liberdade de uma mulher que, enfim, se escolhia.
E talvez, no dia seguinte, voltasse a vestir sua roupa de moça comportada, voltasse à marmita e ao sorriso discreto. Mas agora, entre o espelho e o abismo, havia admitido que existia mais — e era dela.
Nos dias seguintes, Branca voltou à rotina habitual. Vestidos neutros, passos miúdos, café sem açúcar e a pontualidade de sempre. Mas havia algo novo sob a pele. Algo que se movia em silêncio, feito uma chama que se recusa a apagar, mesmo sem oxigênio.
Ela se pegava sorrindo à toa, não por gentileza, mas por lembrança. O olhar do homem na livraria voltava como um eco latejante nos dias cinzentos. Era como se tivesse descoberto um pequeno interruptor escondido — e bastasse um gesto, um perfume, uma palavra dita de forma rouca para acendê-lo.
No ônibus, deixava o livro no colo e perdia-se em fantasias com desconhecidos. Dava rostos a vozes, criava histórias com enredos impróprios. Imaginava encontros em elevadores parados, mãos encostando-se sem querer, um sussurro malicioso em sua nuca. Às vezes, no banheiro do trabalho, apoiava-se na pia e encarava o espelho com a ousadia de quem se sabe pecadora — e, por isso mesmo, viva.
Um dia, sem aviso, Branca entrou numa loja de lingeries. Tocou as rendas como quem toca um segredo. Não comprou nada. Ainda não. Mas saiu de lá com o corpo em brasa e o peito em alvoroço. À noite, deitada, imaginou-se vestida de vermelho. Só de vermelho. Deitada num sofá desconhecido, rindo de um homem que a chamava de “minha perdição”. E então, como quem quebra uma promessa, deslizou a mão pelo corpo e se entregou sem culpa. Com gosto.
Começou a escrever. Coisas pequenas. Frases soltas num caderno escondido atrás dos livros de filosofia. Textos sobre desejos. Palavras que nunca ousaria dizer em voz alta. “Quero ser desobedecida. Quero ser despida devagar. Quero não saber o que vai acontecer.” E às vezes: “Quero apenas me olhar e não sentir vergonha de nada do que sou.”
Numa tarde de chuva, Branca entrou num bar. Sozinha. Pediu vinho. Deixou a alça do vestido escorregar um pouco do ombro. Nenhum escândalo. Nenhuma promessa. Apenas a certeza de que existia algo em si que não queria mais ser trancado.
Ela ainda falava baixo, ainda agradecia com gentileza, ainda sorria com pudor. Mas à noite, antes de dormir, passava batom para si mesma e dizia ao espelho:
— Hoje, você foi minha. Amanhã, talvez também.
Branca seguia recatada por fora. Mas por dentro? Ah, por dentro ela dançava nua sobre os móveis da própria alma.
Chamava-se Branca— nome breve, translúcido. E era assim que todos a viam: clara, previsível, quase santa. A moça do escritório que nunca levantava a voz, nunca saía depois do expediente, nunca comentava sobre homens. A que levava marmita. A que lia romances no ônibus, sem fones de ouvido.
Mas Branca guardava segredos. Não daqueles que se escondem no armário — eram segredos que caminhavam com ela. Viviam entre as dobras da roupa íntima de algodão, entre os sonhos que ela nunca contava, entre as palavras que morriam antes de atravessarem a garganta.
À noite, deitada em seu quarto escuro, Branca não era mais Branca. Era brasa.
Pensava nos homens que cruzavam seu caminho. No porteiro de braços tatuados. No colega de trabalho que mastigava devagar. No motorista do aplicativo com voz grave. Pensava neles não com culpa, mas com fome. Tinha fantasias que vinham como febre: suadas, desordenadas, viscerais. Imaginava ser puxada pela cintura, beijada contra uma parede fria, sussurrada no ouvido com uma voz que dissesse o que fazer — e ela faria.
Durante o dia, controlava cada passo. À noite, era uma mulher de joelhos diante da própria vontade. Não rezava. Gemia em silêncio.
Certa tarde de sábado, saiu com um vestido preto, colado ao corpo, algo que não usava desde antes de... antes de se apagar. Cabelo solto, batom vermelho. Entrou numa livraria do centro só para provar a si mesma que ainda podia ser notada. E foi. Sentiu olhares. Um em especial a percorreu como um toque demorado. Era um homem sozinho na seção de fotografia. Ela cruzou por ele. Olhou rápido, mas foi suficiente. Um calor subiu do ventre ao pescoço.
Não trocou uma palavra. Nem precisava. Era só uma dança de possibilidade.
Naquela noite, deitada, ela se despiu lentamente. Mas, ao contrário de todas as outras vezes, não fechou os olhos para imaginar: manteve-os abertos, cravados no espelho do guarda-roupa.
Viu-se inteira e sem pudores contidos.
E sussurrou para o reflexo:
— Você não é recatada. Nunca foi. Só estava com medo.
A mão que antes tremia, agora guiava. O corpo que antes se escondia, agora se exibia para si. Não havia plateia. Apenas a liberdade de uma mulher que, enfim, se escolhia.
E talvez, no dia seguinte, voltasse a vestir sua roupa de moça comportada, voltasse à marmita e ao sorriso discreto. Mas agora, entre o espelho e o abismo, havia admitido que existia mais — e era dela.
Nos dias seguintes, Branca voltou à rotina habitual. Vestidos neutros, passos miúdos, café sem açúcar e a pontualidade de sempre. Mas havia algo novo sob a pele. Algo que se movia em silêncio, feito uma chama que se recusa a apagar, mesmo sem oxigênio.
Ela se pegava sorrindo à toa, não por gentileza, mas por lembrança. O olhar do homem na livraria voltava como um eco latejante nos dias cinzentos. Era como se tivesse descoberto um pequeno interruptor escondido — e bastasse um gesto, um perfume, uma palavra dita de forma rouca para acendê-lo.
No ônibus, deixava o livro no colo e perdia-se em fantasias com desconhecidos. Dava rostos a vozes, criava histórias com enredos impróprios. Imaginava encontros em elevadores parados, mãos encostando-se sem querer, um sussurro malicioso em sua nuca. Às vezes, no banheiro do trabalho, apoiava-se na pia e encarava o espelho com a ousadia de quem se sabe pecadora — e, por isso mesmo, viva.
Um dia, sem aviso, Branca entrou numa loja de lingeries. Tocou as rendas como quem toca um segredo. Não comprou nada. Ainda não. Mas saiu de lá com o corpo em brasa e o peito em alvoroço. À noite, deitada, imaginou-se vestida de vermelho. Só de vermelho. Deitada num sofá desconhecido, rindo de um homem que a chamava de “minha perdição”. E então, como quem quebra uma promessa, deslizou a mão pelo corpo e se entregou sem culpa. Com gosto.
Começou a escrever. Coisas pequenas. Frases soltas num caderno escondido atrás dos livros de filosofia. Textos sobre desejos. Palavras que nunca ousaria dizer em voz alta. “Quero ser desobedecida. Quero ser despida devagar. Quero não saber o que vai acontecer.” E às vezes: “Quero apenas me olhar e não sentir vergonha de nada do que sou.”
Numa tarde de chuva, Branca entrou num bar. Sozinha. Pediu vinho. Deixou a alça do vestido escorregar um pouco do ombro. Nenhum escândalo. Nenhuma promessa. Apenas a certeza de que existia algo em si que não queria mais ser trancado.
Ela ainda falava baixo, ainda agradecia com gentileza, ainda sorria com pudor. Mas à noite, antes de dormir, passava batom para si mesma e dizia ao espelho:
— Hoje, você foi minha. Amanhã, talvez também.
Branca seguia recatada por fora. Mas por dentro? Ah, por dentro ela dançava nua sobre os móveis da própria alma.
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