Teto de Vidro
Marta e Caio estavam juntos havia vinte e sete anos. À primeira vista, eram o retrato tranquilo de um casamento bem-sucedido: uma casa ajeitada, filhos criados, a cumplicidade morna de quem já se conhece nos gestos, nas ausências, nos intervalos.
Mas ninguém vê, de fora, o que se esconde por trás das paredes — nem o que vibra silenciosamente sob o teto de vidro.
Era uma noite comum. O jantar simples, a louça deixada de lado, o cansaço dividindo espaço com a vontade de adiar o sono. Sentaram-se na varanda, onde o vento morno balançava as cortinas e trazia o cheiro doce das flores do jardim, misturado ao odor mais áspero da terra.
— Às vezes eu me pergunto — disse Marta, olhando para o quintal escuro — se a vida que temos é a vida que queríamos mesmo ter.
Não havia amargura na voz dela, apenas uma espécie de melancolia resignada, como quem acaricia uma ferida antiga sem intenção de curá-la.
Caio demorou a responder. Ele também carregava, dentro dos olhos gastos, perguntas que evitava encarar de frente. Fantasiava, por vezes, uma vida em que tivesse seguido outros caminhos — uma carreira diferente, uma cidade distante, outros rostos para lhe sorrirem ao fim do dia.
Marta também sonhava, secretamente. Não com novos amores, necessariamente, mas com novas versões de si mesma: a mulher que teria viajado sozinha para longe, que teria dito não sem culpa, que teria sido, em algum momento, irresponsavelmente livre.
Eles se amavam — sabiam disso. Mas o amor verdadeiro, com o tempo, aprende a conviver com essas pequenas traições da mente. Fantasiar não era desamar; era, talvez, tentar lembrar que ainda eram mais do que o papel que desempenhavam.
— Somos como vidraças velhas — disse Caio, enfim, olhando para o céu onde a lua mal aparecia. — Cheias de pequenas rachaduras. Algumas quase invisíveis. Mas rachaduras, ainda assim.
Marta sorriu, um sorriso que não era de deboche, nem de tristeza — era de entendimento profundo. Passou a ponta dos dedos pela borda da taça de vinho, como se quisesse desenhar suas próprias fissuras.
— E se um dia quebrarmos de vez? — perguntou, num sussurro.
Caio a olhou de verdade, como poucas vezes fazia. Viu nela a jovem de antes e a mulher de agora, coexistindo no mesmo corpo, na mesma alma cheia de arestas e ternuras.
— Então — respondeu — a gente recolhe os cacos. E tenta fazer alguma coisa bonita com eles.
O silêncio se estendeu, mas dessa vez era confortável. Sabiam que fantasias existiriam sempre: tardes em que Marta pensaria em partir sem deixar bilhete, noites em que Caio imaginaria como seria voltar a ser um estranho em outra cama. Pequenas fugas mentais que não ameaçavam a casa — apenas lembravam que ela era feita de vidro, e que, por mais sólida que parecesse, sempre exigiria cuidado.
Fantasias eram como pássaros presos nas janelas: às vezes batiam as asas com força contra os vidros, tentando escapar. Outras vezes, apenas pousavam no parapeito da mente, observando em silêncio.
Marta terminou o vinho e encostou a cabeça no ombro de Caio. Não havia promessas novas para fazer. Não havia garantias contra o tempo, o desgaste, a força invisível das rachaduras.
Mas havia aquela noite, aquele vento morno, aquele teto de vidro que ainda sustentava seus sonhos e seus medos.
E, enquanto a casa rangia suavemente ao redor deles, escolheram — mais uma vez — permanecer.
Permanecer apesar das trincas. Talvez, até, por causa delas.
Na manhã seguinte, Marta acordou antes de Caio.
O céu ainda estava pálido, e a luz do sol, filtrada pelas janelas da sala, desenhava manchas douradas nas paredes. A casa parecia mais frágil nesses primeiros minutos do dia, como se confessasse, sem defesas, todas as marcas do tempo: os rangidos discretos do assoalho, a pintura descascando em lugares esquecidos, a poeira que insistia em voltar.
Marta caminhou descalça até a cozinha, preparando o café com a prática de quem conhece cada som da casa: o clique do interruptor, o gemido da chaleira, o estalar da madeira sob seus passos.
Enquanto esperava a água ferver, olhou para a janela da sala. As marcas estavam lá: pequenos riscos no vidro, cicatrizes quase imperceptíveis a olho nu, mas que, sob a luz certa, se revelavam com nitidez.
Sorriu sozinha. Aquelas rachaduras, pensou, eram como eles. Não negavam as falhas, nem escondiam os desejos secretos, nem fingiam ser mais fortes do que eram. E, ainda assim, sustentavam o que precisava ser sustentado: a casa, a história, o amor — mesmo que às vezes meio torto.
Ouviu passos pesados atrás de si. Caio, ainda meio sonolento, enlaçou-a pela cintura, apoiando o queixo no ombro dela.
— Bom dia — murmurou, a voz rouca.
Ela se virou devagar, segurando o rosto dele entre as mãos, como se soubesse que tudo — absolutamente tudo — é feito de instantes assim: frágeis, trincados, preciosos.
— Bom dia — respondeu.
Tomaram café juntos na varanda, como tantas outras vezes. Falaram pouco. Cada um carregava dentro de si seus próprios sonhos secretos, suas fugas imaginárias, seus lugares não visitados. Mas havia também o que construíam ali, no silêncio partilhado, na cumplicidade de quem conhece os limites do próprio teto de vidro — e ainda assim escolhe dançar sob ele.
Lá fora, o dia crescia. E as rachaduras, iluminadas pelo sol nascente, brilhavam como pequenos rios de luz.
Silvia Marchiori Buss
Mas ninguém vê, de fora, o que se esconde por trás das paredes — nem o que vibra silenciosamente sob o teto de vidro.
Era uma noite comum. O jantar simples, a louça deixada de lado, o cansaço dividindo espaço com a vontade de adiar o sono. Sentaram-se na varanda, onde o vento morno balançava as cortinas e trazia o cheiro doce das flores do jardim, misturado ao odor mais áspero da terra.
— Às vezes eu me pergunto — disse Marta, olhando para o quintal escuro — se a vida que temos é a vida que queríamos mesmo ter.
Não havia amargura na voz dela, apenas uma espécie de melancolia resignada, como quem acaricia uma ferida antiga sem intenção de curá-la.
Caio demorou a responder. Ele também carregava, dentro dos olhos gastos, perguntas que evitava encarar de frente. Fantasiava, por vezes, uma vida em que tivesse seguido outros caminhos — uma carreira diferente, uma cidade distante, outros rostos para lhe sorrirem ao fim do dia.
Marta também sonhava, secretamente. Não com novos amores, necessariamente, mas com novas versões de si mesma: a mulher que teria viajado sozinha para longe, que teria dito não sem culpa, que teria sido, em algum momento, irresponsavelmente livre.
Eles se amavam — sabiam disso. Mas o amor verdadeiro, com o tempo, aprende a conviver com essas pequenas traições da mente. Fantasiar não era desamar; era, talvez, tentar lembrar que ainda eram mais do que o papel que desempenhavam.
— Somos como vidraças velhas — disse Caio, enfim, olhando para o céu onde a lua mal aparecia. — Cheias de pequenas rachaduras. Algumas quase invisíveis. Mas rachaduras, ainda assim.
Marta sorriu, um sorriso que não era de deboche, nem de tristeza — era de entendimento profundo. Passou a ponta dos dedos pela borda da taça de vinho, como se quisesse desenhar suas próprias fissuras.
— E se um dia quebrarmos de vez? — perguntou, num sussurro.
Caio a olhou de verdade, como poucas vezes fazia. Viu nela a jovem de antes e a mulher de agora, coexistindo no mesmo corpo, na mesma alma cheia de arestas e ternuras.
— Então — respondeu — a gente recolhe os cacos. E tenta fazer alguma coisa bonita com eles.
O silêncio se estendeu, mas dessa vez era confortável. Sabiam que fantasias existiriam sempre: tardes em que Marta pensaria em partir sem deixar bilhete, noites em que Caio imaginaria como seria voltar a ser um estranho em outra cama. Pequenas fugas mentais que não ameaçavam a casa — apenas lembravam que ela era feita de vidro, e que, por mais sólida que parecesse, sempre exigiria cuidado.
Fantasias eram como pássaros presos nas janelas: às vezes batiam as asas com força contra os vidros, tentando escapar. Outras vezes, apenas pousavam no parapeito da mente, observando em silêncio.
Marta terminou o vinho e encostou a cabeça no ombro de Caio. Não havia promessas novas para fazer. Não havia garantias contra o tempo, o desgaste, a força invisível das rachaduras.
Mas havia aquela noite, aquele vento morno, aquele teto de vidro que ainda sustentava seus sonhos e seus medos.
E, enquanto a casa rangia suavemente ao redor deles, escolheram — mais uma vez — permanecer.
Permanecer apesar das trincas. Talvez, até, por causa delas.
Na manhã seguinte, Marta acordou antes de Caio.
O céu ainda estava pálido, e a luz do sol, filtrada pelas janelas da sala, desenhava manchas douradas nas paredes. A casa parecia mais frágil nesses primeiros minutos do dia, como se confessasse, sem defesas, todas as marcas do tempo: os rangidos discretos do assoalho, a pintura descascando em lugares esquecidos, a poeira que insistia em voltar.
Marta caminhou descalça até a cozinha, preparando o café com a prática de quem conhece cada som da casa: o clique do interruptor, o gemido da chaleira, o estalar da madeira sob seus passos.
Enquanto esperava a água ferver, olhou para a janela da sala. As marcas estavam lá: pequenos riscos no vidro, cicatrizes quase imperceptíveis a olho nu, mas que, sob a luz certa, se revelavam com nitidez.
Sorriu sozinha. Aquelas rachaduras, pensou, eram como eles. Não negavam as falhas, nem escondiam os desejos secretos, nem fingiam ser mais fortes do que eram. E, ainda assim, sustentavam o que precisava ser sustentado: a casa, a história, o amor — mesmo que às vezes meio torto.
Ouviu passos pesados atrás de si. Caio, ainda meio sonolento, enlaçou-a pela cintura, apoiando o queixo no ombro dela.
— Bom dia — murmurou, a voz rouca.
Ela se virou devagar, segurando o rosto dele entre as mãos, como se soubesse que tudo — absolutamente tudo — é feito de instantes assim: frágeis, trincados, preciosos.
— Bom dia — respondeu.
Tomaram café juntos na varanda, como tantas outras vezes. Falaram pouco. Cada um carregava dentro de si seus próprios sonhos secretos, suas fugas imaginárias, seus lugares não visitados. Mas havia também o que construíam ali, no silêncio partilhado, na cumplicidade de quem conhece os limites do próprio teto de vidro — e ainda assim escolhe dançar sob ele.
Lá fora, o dia crescia. E as rachaduras, iluminadas pelo sol nascente, brilhavam como pequenos rios de luz.
Silvia Marchiori Buss
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