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Mostrando postagens de maio, 2025

As Gavetas da Vida

A vida pode ser comparada a uma cômoda de madeira cheia de surpresas, que nos acompanha por anos: silenciosa, resistente, marcada por arranhões que o tempo fez questão de deixar à mostra. Dentro dela, guardamos tudo: memórias, medos, cartas que nunca enviamos, desejos que um dia tivemos coragem de confessar apenas a nós mesmos. E, como qualquer móvel antigo, há gavetas que deslizam com facilidade… e outras que exigem força, paciência ou até coragem para abrir. Algumas se abrem quase sozinhas. Basta um cheiro, uma música, uma tarde nublada, e pronto: a gaveta da infância se escancara. De lá, saltam risos antigos, vozes que já não ouvimos mais, um par de sapatos minúsculos, uma figurinha colada num caderno. A nostalgia é rápida e gentil — vem, nos toca os ombros e parte sem exigir demais. Mas há aquelas outras... as que rangem, emperram, que parecem coladas com uma cola invisível. São gavetas que guardam perdas, escolhas difíceis, o nome de alguém que nunca dissemos em voz alta. Quan...

Como Cavalo Domado

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Seu nome era Olavo, mas todos na vila o chamavam de “Seu Lavo”, como se a vida tivesse comido o ‘O’ com a mesma pressa com que lhe levou os sonhos. Morava numa casa simples, cercada por uma cerca de arame e roseiras bravas, com a mulher de sempre, Benedita, e um silêncio que só era quebrado aos domingos, quando os filhos vinham. Durante a semana, era ele e o rádio. Benedita costurava, sem pressa, no mesmo canto da varanda onde, um dia, ninou os três filhos que agora moravam na cidade — um advogado, uma professora e um gerente de loja. Todos “bem de vida”, como diziam os vizinhos. Mas o orgulho de Olavo vinha misturado com uma espécie de saudade muda, daquelas que não se dizem em voz alta. Aos domingos, tudo mudava. O cheiro do frango assado tomava a casa, e o velho se barbeava com capricho, vestia a camisa de botões que Benedita passava com vapor e cuidado. Sentava-se à cabeceira da mesa e esperava. Os filhos chegavam, riam alto, traziam netos barulhentos, vinhos caros e histórias de u...

Pedaços de Mim

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Desde pequena, Júlia colecionava coisas: tampinhas de garrafa, bilhetes escritos à mão, folhas secas em cadernos velhos. Chamava aquilo de “pedaços do tempo”. Aprendera com o pai, seu primeiro melhor amigo, que a memória é como uma caixa de botões antigos — nem sempre sabemos de onde vieram, mas guardamos porque, de algum modo, ainda nos servem. Foi o pai quem lhe mostrou a beleza dos detalhes, dos silêncios bem vividos, das perguntas sem pressa. Com ele, Júlia aprendeu que o mundo era maior do que o quintal onde brincava, mas que era possível carregá-lo em pequenos gestos: um café passado com atenção, um olhar cúmplice, uma história contada com a mesma voz das noites de febre. Aos vinte, Júlia conheceu Carlos. Não foi paixão à primeira vista. Foi algo mais raro: um reconhecimento. Como se ambos tivessem vivido juntos em outra existência, ou talvez só tivessem se esbarrado tantas vezes na mesma calçada da vida que, um dia, pararam e disseram “é você”. Carlos era discreto, cheio de mani...

Feito Uma Gata no Cio

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Inês chegou como quem retorna a um lugar onde deixou algo inacabado. Não bateu à porta. Apenas girou a maçaneta e entrou, com a mesma naturalidade de quem sempre teve uma chave imaginária daquele espaço — e daquele homem. Tirou os sapatos, pousou a bolsa na poltrona de couro e foi direto até onde ele estava, como se os meses que os separaram tivessem sido apenas um intervalo entre capítulos. Otávio não se levantou. Apenas ergueu os olhos, como se já soubesse que ela viria, mais cedo ou mais tarde. Era um homem de silêncios bem treinados e sentimentos escondidos atrás da barba por fazer. Mas, naquele momento, ao vê-la, algo tremeu em sua imobilidade. Ela se encostou no batente da porta, braços cruzados, um vestido leve colando nas curvas com a ajuda de uma brisa morna que atravessava a casa. Havia em Inês um brilho febril, algo entre o perigo e o convite. — Ainda escrevendo sobre as mulheres com quem você não tem coragem de viver? — provocou, sem pressa, com um meio sorriso que insi...

Batom Vermelho

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Ninguém dava nada por Odete. Nem o balconista do armarinho da esquina, que sempre errava o troco e a chamava de “minha senhora”, com um desdém automático. Nem a vizinha do 402, que fazia cara de pena sempre que via Odete com a sacola retornável da feira e os cabelos presos num coque desalinhado. Nem mesmo o gato do condomínio, que preferia dormir na porta da Marilza, do 502, só porque ela usava Chanel número 5. Odete era, no máximo, uma sombra discreta no corredor do prédio. Quarenta e sete anos, pele muito pálida, dentes pequenos demais, quadris grandes demais. Usava bege, cinza e, às vezes, ousava com um marrom triste. Não sorria muito, mas também não reclamava. Era invisível com educação. Até que, num sábado qualquer, Odete decidiu passar o batom vermelho. Não foi um ato planejado. Foi um surto de revolta no meio da sessão de congelados do supermercado. Alguém pegou a última lasanha quatro queijos e Odete, num impulso inexplicável, olhou para a câmera de segurança como se fosse uma...

Dia de Renascer

  Às vezes, renascer não tem clarins, nem aurora espetacular. Renascer pode ser silencioso — como quem abre os olhos depois de uma noite insone e percebe que está vivo, apesar do cansaço. Pode ser quando a dor já não morde tanto, quando conseguimos lembrar sem sangrar, quando respiramos sem o peso todo no peito. Ninguém escolhe a hora exata de renascer. Às vezes é num café derramado, num bilhete antigo reencontrado, numa música que toca do nada e nos reconecta com algo que pensávamos ter perdido. Às vezes é quando decidimos sair de casa só para sentir o vento no rosto — e ele, inesperadamente, nos devolve um pedaço de coragem. Renascer não exige que a ferida esteja curada. Exige apenas que aceitemos o passo seguinte. Que mesmo com medo, ainda assim, a gente vá. Porque há dias em que o sol não entra pela janela, mas nasce dentro da gente. Devagar. Mas nasce. E quando isso acontece, sem anúncio, sem plateia, sem ninguém para aplaudir — esse pode ser o verdadeiro dia de rena...

Queremos o Óbvio

  Queremos o óbvio, mas é como se o mundo tivesse desaprendido a oferecê-lo. Não estamos pedindo que nos amem como nos filmes, que nos surpreendam com flores ou jantares sob estrelas — embora tudo isso seja bonito. Queremos o simples, o essencial, o que deveria ser pressuposto. Que não nos interrompam enquanto falamos. Que não sumam sem explicação. Que saibam o que fazer com a nossa vulnerabilidade quando ela aparecer sem maquiagem. Queremos o gesto sem cerimônia. O cuidado que não se anuncia. A presença que não pesa, mas preenche. Ninguém aguenta mais a estética do “ser especial” a qualquer custo, enquanto por dentro todo mundo está só querendo ser levado a sério. Um pouco de escuta, um pouco de verdade. Alguém que nos veja não como projeto, nem como distração, mas como pessoa — com manias, com horários, com dias ruins. Tem gente colecionando frases bonitas e perdendo gente que só queria ser tratada com um pouco de gentileza. E não, não é pedir demais. É pedir o mínimo. ...

Não Quero Dizes Adeus

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Jussara segurava a borda da colcha como quem se apega a um porto antes da maré levar tudo. Os dedos tremiam, mas não era frio. Era o que vinha depois da última frase, do último abraço, da última xícara de café. Era o depois que ela temia. A mala estava pronta desde ontem, encostada na porta como um convite silencioso à partida. Ela fingia que não via. Andava pela casa como se ainda houvesse tempo — arrumando gavetas que não precisavam, molhando plantas que não estavam secas, passando os dedos pelas fotos empoeiradas da estante como se pudesse tocá-los mais uma vez. Henrique a observava do batente da cozinha. Já não discutia. Também já não pedia que ela fosse. Só esperava. Esperava com aquele olhar de quem entende tudo, mas não consegue impedir nada. — Você vai mesmo? — ela perguntou, como se fosse a primeira vez. — Vou — ele respondeu, com a calma triste dos que já disseram isso muitas vezes. Ele não queria ir, ela não queria que ele fosse, mas ambos sabiam que às vezes querer não tem...

Uma Noite de Verão

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A cidade exalava o cheiro doce do verão — frutas amadurecendo cedo demais nas árvores dos quintais, jasmim molhado nas grades das casas, o asfalto ainda quente sob os pés. Clarice caminhava devagar, sem pressa de voltar. No pulso, o elástico da sacola da feira marcava a pele; dentro, pêssegos maduros e um quilo de açúcar mascavo. Era só mais uma noite morna no bairro onde nada acontecia. Até que aconteceu. Ali, no coreto antigo da praça — que há anos servia mais de abrigo de pombos do que de música — ela viu Miguel, inclinado sobre uma câmera fotográfica, como se tentasse capturar a nostalgia. Ele ergueu os olhos. O susto foi mútuo. — Clarice? — A voz dele não mudara. Era a mesma que sussurrava “fica só mais um pouco” no vão das madrugadas de outros tempos. — Miguel. — respondeu. O nome veio como se nunca tivesse deixado seus lábios. Sentaram-se lado a lado no degrau de cimento. O silêncio, a princípio, foi como um copo d’água diante de um incêndio. Mas logo as palavras vieram — frág...

A Serva de São Bento

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Dona Jurema morava a exatas cinquenta e três passadas da porta lateral da Igreja de São Bento — ela contava todos os dias, com seus chinelos de lã rosa e um terço pendurado no punho. Usava sempre vestidos estampados com flores miúdas - de preferência roxas ou verdes, "cores de respeito", dizia ela -, um casaquinho de crochê que nunca combinava com nada e uma bolsa de palha com santos presos com alfinetes — Nossa Senhora, São José, Santa Terezinha e um São Jorge que vivia despencando. Seu cabelo era preso num coque firme, sustentado por três grampos e uma fé inabalável. O batom, sempre cor de vinho, destoava do resto, mas era seu toque de vaidade — “um sinal de que estou viva”, explicava às fofoqueiras de plantão. Mas Jurema não era uma beata qualquer. Não. Ela era A beata. A zeladora, a organizadora dos bingos, a dama do altar, a madrinha do coral - mesmo desafinando- a defensora dos santos, e a sombra constante do Santo Padre, o Padre Alberto, homem calmo e franzino que já n...

Várias Vidas Dentro de Uma

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É curioso pensar que, mesmo em uma vida breve, possamos carregar tantas versões de nós mesmos. Como se dentro de uma só história morassem outras tantas — cada uma com suas roupas, seus medos, suas descobertas, seus silêncios. A infância que tivemos já não reconhece o olhar que hoje lançamos sobre o mundo. A juventude que tivemos talvez estranhe a serenidade ou a fadiga que agora nos habita. E a mulher que amanhece todos os dias já não se parece tanto com a que adormeceu ontem. Vivemos tantas vidas dentro de uma só que às vezes parece que fomos sendo trocadas aos poucos — uma peça por vez — como um quebra-cabeça que muda de forma à medida que se completa. Fomos filhas, irmãs, depois amantes, mães, trabalhadoras, errantes, conselheiras. Em alguns momentos, heroínas silenciosas de lutas íntimas; em outros, apenas presenças ofuscadas nos corredores do cotidiano. Cada fase teve sua música, sua pele, sua intensidade. Houve tempos de urgência, em que tudo ardia: o desejo, o medo, a vontade de...

Gosto Salgado

  Não foi uma decisão. Foi um chamado. Como se teu nome ecoasse nas marés, como se cada onda sussurrasse: vem. Eu vim. Atravessar o oceano nunca é apenas sobre milhas náuticas, aviões ou fuso-horário. É sobre ausência que pesa. Sobre saudades que aperta no peito como se quisesse abrir passagem à força. Eu vim porque teu silêncio era mais alto que todos os sons ao meu redor. Porque tua falta não deixava espaço para mais ninguém. Atravessei o tempo, as distâncias, os medos, as desculpas. Enfrentei as turbulências do céu e as do coração. Tive medo. Não nego. Medo de não te encontrar mais inteiro, medo de que tuja não esperasses. Mas vim. Com a roupa amassada de lembranças, o olhar cansado de imaginar teus gestos e a alma aberta como se estivesse chegando pela primeira vez. Quando desci, ainda com o gosto salgado da travessia nos lábios, soube – mesmo que o mar tivesse se posto entre nós, ainda era o teu porto onde me reconheço. E se amanhã outro oceano se levantar, atraves...

Fios Que Apertam, Nós Que Prendem

Há nós que não se veem, mas se sentem. Não chegam com estardalhaço nem avisam de sua presença — apenas se instalam, silenciosos, entre os gestos mais cotidianos. De manhã, quando o corpo desperta e o peso de levantar é maior que o de permanecer, eles estão ali. À mesa do café, entre contas vencidas e silêncios acumulados. No toque hesitante que não se dá, no afeto retido, na palavra que seria ponte, mas vira muro. Esses nós não foram feitos por monstros ou carrascos evidentes. Foram sendo construídos, dia após dia, pelos medos herdados, pelos sonhos engavetados, pelas normas que nos ensinaram antes mesmo de sabermos que havia escolha. Foram feitos com a nossa permissão. Na vida afetiva, eles apertam na forma de relações que já não tocam, mas sustentamos por hábito ou por pânico de estar só. Na vida econômica, se manifestam no cansaço que nunca dorme, no suor que não basta, no labirinto de números onde a dignidade se perde. Quando nos amarramos em um tronco e nos “automutilamos”. E so...

Âncora da Vida

Há pessoas que são âncoras. Não aquelas que nos prendem ou nos impedem de navegar – mas as que nos dão base, que nos mantêm firmes mesmo em alto mar. Gente que, só por existir, dá sentido ao porto e ao horizonte. Que nos sustenta nas tempestades e nos relembra que, apesar das ondas, ainda pertencemos a algum lugar. Quando essa âncora se vai, parece que o mar nos engole. O barco continua, é verdade – ainda há filhos, netos, compromissos, paisagens ao redor. Mas falta o ponto de retorno. A certeza de que, por mais longe que se vá, existe alguém à espera. Perder essa pessoa é perder o eixo invisível da bússola que nos guiava. E por mais amor que haja ao redor – e há - nenhum amor substitui o da âncora. Porque ela era feita da mesma matéria que o nosso íntimo. Era a companhia que sabia o que não dizíamos, o silêncio que nos acolhia sem precisar ser explicado. Era o chão dentro do coração. Há dias em que conseguimos fingir uma esperança, acreditar em reencontros, em outras dimensões...

Brinquedos Quebrados

     Cuidar de si, hoje, é um ato de coragem. Vivemos numa vitrine permanente. Expostos, julgados, comentados — como se a vida fosse um programa em que todos têm direito a voto, mas poucos têm empatia. E, sem perceber, vamos deixando que a opinião alheia arranhe nossa superfície, que o olhar do outro nos diga quem somos, como devemos ser, o que vale ou não em nós. E quando damos por conta… já não tocamos mais aquela música que nos fazia únicos. Estamos ali, na prateleira dos brinquedos quebrados. Mas não porque o tempo nos desgastou — o tempo é sábio, ele amadurece, ensina, transforma. O que nos quebra são as palavras afiadas ditas sem cuidado. São os olhares que diminuem, os julgamentos que se infiltram feito ferrugem na alma. É o algoritmo impiedoso que nos compara, que sugere que sempre há alguém melhor, mais bonito, mais produtivo, mais amado. E se não cuidamos… Nos entregamos. Nos deixamos desmontar peça por peça, até que só reste o silêncio onde antes havi...

Num Lugar Bem Distante

  Dizem que a felicidade mora longe. Que está guardada em um lugar bem distante – talvez numa casa de campo com janelas abertas para um vale florido, ou numa praia de águas mornas onde o tempo caminha descalço. Muitos acreditam nisso. E, por acreditarem, vão adiando a alegria. Guardam o riso para o sábado. A dança para as férias. O abraço para quando houver menos pressa. O amor para depois das dores resolvidas. E assim, os dias passam como páginas em branco, esperando um capítulo extraordinário que talvez nunca venha. Mas a verdade é que a felicidade não tem endereço fixo. Ela não mora no fim do mundo, nem depois da aposentadoria, nem em outro continente. Ela se esconde nos detalhes miúdos: no café quente segurado com as duas mãos, na brisa que entra sem pedir licença pela fresta da janela, na risada inesperada que escapa mesmo nos dias nublados. Há quem passe a vida inteira acreditando que será feliz “quando”. Quando se casar. Quando se mudar. Quando os filhos crescerem. Qua...

Queria Ter Você Aqui

Queria tanto ter você aqui... Não para dizer tudo que ficou engasgado, nem para tentar consertar os silêncios. Queria apenas te ver sentado ali, na beirada da tarde, com o rosto meio sombra, meio sol, do jeito que só o tempo sabe desenhar em quem a gente ama. Não precisaria me olhar. Nem sorrir. Bastava existir, ali, de novo — como quem não partiu, como quem ainda mora nas pequenas rotinas que você deixou. Talvez eu ficasse quieta. Ou dissesse, entre um café e outro, que o dia amanheceu com cheiro de jasmim, como você gostava. Talvez até te perguntasse se ainda lembra daquela música que tocava toda vez que chovia — aquela que parecia dizer o que a gente nunca soube nomear. Mas sei. Sei que o tempo não volta. Que o que foi já se desfez em partículas de saudade. Ainda assim, há dias em que o coração insiste: queria tanto ter você aqui... Talvez só para dividir um silêncio. Ou para ouvir sua respiração pausada, como se o mundo ainda coubesse na paz de um instante simples. Talv...

Está Tudo Bem Comigo...

Essa pergunta costuma aparecer de mansinho, quando o barulho do mundo silencia e a gente, enfim, se encontra com o próprio espelho — não o de vidro, mas aquele invisível que mora dentro da gente. Às vezes, dizemos que sim. Está tudo bem. Trabalhamos, pagamos contas, sorrimos em fotos, respondemos mensagens com emojis, vamos aos aniversários e até contamos piadas. Está tudo bem — ou deveria estar. Mas, se a gente para de repetir para os outros e escuta de verdade a pergunta... talvez descubra que nem tudo está em ordem. Há cansaços que não têm nome. Saudade de algo que não sabemos mais o que é. Vontade de sumir por uns dias, sem dar explicação. E uma dor que não grita, mas aperta. Uma ausência de nós mesmos. É difícil admitir isso. Porque o mundo pede que sejamos fortes, produtivos, gratos. E, sim, temos muito a agradecer. Mas isso não impede que haja um buraco no peito que nem a gratidão preenche. Um eco de algo que ficou para trás. Um silêncio dentro de nós que ninguém escuta....

Gosto Salgado

  Não foi uma decisão. Foi um chamado. Como se teu nome ecoasse nas marés, como se cada onda sussurrasse: vem. Eu vim. Atravessar o oceano nunca é apenas sobre milhas náuticas, aviões ou fuso-horário. É sobre ausência que pesa. Sobre saudades que aperta no peito como se quisesse abrir passagem à força. Eu vim porque teu silêncio era mais alto que todos os sons ao meu redor. Porque tua falta não deixava espaço para mais ninguém. Atravessei o tempo, as distâncias, os medos, as desculpas. Enfrentei as turbulências do céu e as do coração. Tive medo. Não nego. Medo de não te encontrar mais inteiro, medo de que tuja não esperasses. Mas vim. Com a roupa amassada de lembranças, o olhar cansado de imaginar teus gestos e a alma aberta como se estivesse chegando pela primeira vez. Quando desci, ainda com o gosto salgado da travessia nos lábios, soube – mesmo que o mar tivesse se posto entre nós, ainda era o teu porto onde me reconheço. E se amanhã outro oceano se levantar, atraves...

O Adeus de Carolina

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Ninguém soube ao certo quando começou a partida de Carolina. Não foi daquelas despedidas marcadas com data e hora. Foi mais como uma vela que se apaga devagar, resistindo à brisa até o último sopro. Ela sempre foi uma mulher de silêncios densos, daqueles que dizem mais do que muitos discursos. Quando a cidade ainda dormia, Carolina já varria o quintal de terra batida, molhava as plantas com o cuidado de quem entende o peso de uma pétala, preparava o café com uma lentidão que parecia oração. Era mãe de três, avó de cinco, filha de uma mulher que jamais lhe disse "eu te amo", mas que lhe ensinou a amar com gestos. E foi esposa de um homem chamado Vicente — o único que soube ler o que ela nunca disse. Com Vicente, não houve grandes juras nem promessas solenes. O amor deles foi chão. Feito de pão na chapa e silêncio partilhado ao fim do dia. Mas houve uma noite que Carolina nunca esqueceu. Foi numa noite comum, dessas em que a chuva fina começa sem avisar. Os filhos já dormiam, a...

Pequenos Incêndios

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Eles não deixavam rastros de fumaça nem estampavam sirenes no céu. Mas ardiam, eram incêndios íntimos, quase invisíveis. Ardor que começa miúdo e, se não se vê, se alastra. Alguns disfarçados de rotina. Outros de silêncio. Na casa número 18, Marieta cultivava a aparência de normalidade como quem varre brasa para debaixo do tapete. Desde que o filho se foi, a casa ecoava de um jeito cruel. Ela preparava o café como sempre, mas o tilintar das xícaras parecia zombar do vazio ao redor. Silvio, o marido, não via – ou fingia não ver. Continuava lendo jornal em silêncio, como se a ausência fosse só uma fase. Mas Marieta ardia. Ardia na solidão acompanhada, no toque que não vinha, nas palavras que ela não dizia por que já havia desistido de escutar a resposta. Na casa ao lado, Camila repetia a palavra “feliz” com uma frequência ensaiada. Publicava fotos sorrindo, segurando a mão do namorado como se segurasse uma ideia. Mas a lembrança de Ana não passava. Ao contrário: se tornava mais nítida no...

O Lugar é o Mesmo

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O táxi parou diante da casa como quem devolve uma memória ao lugar de onde ela nunca deveria ter saído. Vera hesitou alguns segundos antes de abrir a porta. O motorista nem perguntou se ela precisava de ajuda com a mala – era pequena demais para parecer uma mudança, grande demais para ser só uma visita. A fachada da casa seguia igual. O portão verde desbotado, a parede com pequenas rachaduras disfarçadas por trepadeiras persistentes, o velho banco de madeira sob a janela da sala. Tudo no lugar. Como se o tempo tivesse feito questão de manter a estrutura enquanto ela se desfazia por dentro. Empurrou a porta e a madeira rangeu, como sempre. O mesmo cheiro: um misto de lavanda antiga e café esquecido. No aparador, a tigela de cerâmica azul, onde costumavam ficar as chaves. No chão, as marcas ainda visíveis do tapete que ela levou no último rompante de fuga. Mas ela não estava ali. Seu corpo estava ali. Os pés reconheceram o chão, os olhos varreram os cantos, mas dentro dela havia um abism...

Um Pouco Antes da Chuva

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Era final de tarde quando Eugênia parou o carro em frente à antiga casa dos avós. A fachada estava quase igual: o portão baixo de ferro enferrujado, as plantas crescidas demais no jardim, e o mesmo cheiro de terra molhada no ar — um prenúncio conhecido de que a chuva viria logo. Ela desceu devagar, como quem pisa no passado. Carregava nas mãos um caderno de capa dura e, na memória, lembranças que insistiam em reaparecer sempre que o céu se fechava assim, com aquela luz de prata dissolvida nas nuvens. — É você mesma? — veio uma voz da varanda. Eugênia sorriu. Seu tio Lauro, agora mais curvado e com os cabelos totalmente brancos, ajeitava uma cadeira de palha sob o beiral. Ele era o último a ainda morar por ali, o guardião das histórias, o que nunca quis ir embora. — Eu mesma — respondeu ela, aproximando-se. — Vim antes da chuva. Lauro riu. Era uma frase antiga, deles. Sempre que ela dizia que chegaria “um pouco antes da chuva”, queria dizer que viria antes das urgências, dos compromisso...

Assim Como as Marés

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O vento noturno sussurra segredos na areia molhada enquanto Mariana caminha descalça pela praia, os pés marcando um rastro tênue que o mar insiste em apagar. Há semanas, ela volta a este mesmo trecho de costa, buscando respostas nas oscilações do mar – tal qual seu próprio coração, que ora se agita em tempestade, ora se recolhe calmo. Desde a partida de Lucas, tudo nela ficou na corda bamba: as lembranças pulsam como conchas que batem umas nas outras; o cheiro de sal e brisa lembra o dia em que prometeram nunca mais se afastar. Ele lhe deixara apenas uma carta – palavras tão sinceras quanto cruéis – e a promessa de regressar “quando as marés trouxessem a paz de volta ao meu peito”. Numa noite de luar difuso, Mariana vê, ao longe, uma silhueta solitária caminhando em sua direção. Cada passo dele afunda um pouco na areia úmida, como se pagasse um preço para reencontrá-la. O coração dela dispara, lembrando que o mar pode trazer máscaras febris e ventos traiçoeiros. Mesmo assim, ela fica a...

Está Tudo Bem Comigo?

Pequenas Crônicas  Crônica 1 – O Homem do Café Ela o viu pela primeira vez na fila do terminal rodoviário, segurando um copo de isopor com café fraco e mãos trêmulas que mal disfarçavam a ansiedade. Usava terno escuro, bem passado, mas o colarinho estava torto e o olhar perdido. Não parecia alguém indo a uma reunião. Parecia alguém que estava tentando permanecer inteiro. Quando os olhares se cruzaram, houve um segundo de reconhecimento. Como se os dois soubessem – sem palavras – que já tinham se perguntado, naquela mesma manhã: "Está tudo bem comigo?" Ele desceu uma estação antes, mas deixou nela um rastro de inquietação. Naquela noite, ela escreveu: “Hoje encontrei alguém como eu. Não sei o nome, nem a dor, mas reconheci a coragem. A de levantar-se da cama mesmo sem força. A de vestir a vida mesmo quando ela não serve direito. Talvez seja isso que nos salva – a coragem do “quase.” Crônica 2 – A Moça da Padaria Ela atendia rápido, com um sorriso treinado. Todos a conhecia...

O Circo da Vida

A vida, às vezes, é um grande circo. Um espetáculo montado sob uma lona imaginária, onde cada um de nós é, ao mesmo tempo, plateia e artista, diretor e aprendiz, mestre de cerimônias e trapalhão. No picadeiro, desfilamos nossos talentos, nossas quedas, nossos risos exagerados e dores disfarçadas. Há dias em que somos o palhaço – aquele que finge leveza mesmo com o coração pesado. Noutros, somos o equilibrista, tentando atravessar a corda bamba das decisões, entre o medo de cair e o desejo de seguir. Também há dias em que somos o mágico: tentando transformar cacos em encantamento, inventando encantos com o pouco que temos, torcendo para que ninguém descubra o truque por trás do nosso sorriso. E, vez ou outra, somos o domador – não de feras externas, mas das que rugem dentro de nós: a raiva contida, o cansaço que não cede, a tristeza que não se deixa amansar. Na coxia da existência, quando as luzes se apagam, é onde mora o verdadeiro espetáculo: o choro contido, o nervosismo antes de...

O Adeus se Dá Devagar

Há despedidas que não têm hora marcada. Não chegam com anúncio, nem com alarde. Vão se instalando pelas frestas do cotidiano, feito luz que escapa por entre as cortinas – quase imperceptível, mas constante. Há quem parta aos poucos. Primeiro, deixa de pentear os cabelos com tanto afinco. Depois, esquece o açúcar no café. Mais adiante, já não comenta sobre o tempo, nem pergunta sobre o dia do outro. Vai ficando mais leve, como quem começa a deixar as malas pelo caminho. E a gente, do lado de cá, custa a perceber que aquilo já é adeus. Nem sempre há dor visível. Às vezes, há apenas um cansaço manso nos olhos, uma espécie de paz que assusta. Quem está indo não quer alarmar, nem provocar lágrimas. Vai deixando bilhetes invisíveis nos gestos: um prato lavado com cuidado, uma flor cheirosa no vaso já esquecido. Talvez por isso, vez ou outra a gente olha para o céu sem saber por quê. Talvez seja só uma forma de lembrar de onde viemos – ou de quem nos ensinou, com gestos simples, a dança...

Viver Hoje Como se Fosse o Último

  “Às vezes, tudo o que a vida pede é que a gente repare.” E se soubéssemos o dia exato em que vamos partir? Essa pergunta, à primeira vista, pode soar pesada, incômoda – mas talvez seja só um jeito mais direto de nos perguntar: estamos realmente vivendo ou apenas empurrando os dias com a barriga? Não se trata de pressa, de correr para cumprir uma lista de desejos extravagantes, mas de um tipo de atenção que se perde no automático. Porque é assim: a vida se ocupa de compromissos, prazos, contas e distrações. E, no meio disso tudo, esquecemos que o tempo é a única coisa que não se repõe. Se hoje fosse o último – e ninguém aqui tem garantia de que não seja –, talvez descemos bom dia com mais verdade, deixássemos o café demorar um pouco mais na boca, escutássemos com paciência aquela pessoa que sempre apressamos. Talvez fizéssemos a mesma rotina, mas com outro olhar. Talvez a gente simplesmente agradecesse por varrer a casa, cozinhar para alguém, sentir o cheiro da roupa limpa,...

Onde Dormem as Andorinhas

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O campo amanhecia devagar, como se soubesse que ele não tinha pressa. José acordava antes do sol – não por obrigação, mas por costume. Havia anos que era assim: café passado no coador de pano, botas gastas aos pés e uma conversa muda com o céu ainda cinzento. A casa era pequena, feita de madeira antiga, com cheiro de terra molhada e silêncio. O rádio já não funcionava, mas ele o ligava mesmo assim, como quem insiste numa memória. Na parede da cozinha, ainda estava o retrato de Lurdes – cabelos presos com uma flor do campo, sorriso de canto, olhos de quem sabia mais do que dizia. Era a única que soubera conversar com o tempo junto dele. Lurdes se foi numa tarde de setembro. Um infarto fulminante, disseram. Ele nunca soube exatamente o que isso queria dizer, exceto que, desde aquele dia, o mundo ficou oco. Não quis vender a propriedade. Tampouco voltou à cidade. Preferiu ficar. “Lá não cabe mais meu silêncio”, dizia, se alguém insistia. No campo, aprendeu a lidar com a ausência como quem...

Talco de Lavanda

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O cheiro de talco de lavanda ainda pairava no ar, como se o tempo, por delicadeza, tivesse se recusado a passar naquele quarto. Cada vez que Luísa abria a gaveta da antiga cômoda de pinho, era como se voltasse à infância – não à infância propriamente dita, mas àquela parte da infância que escolhemos guardar. Era na casa de Cecília que o mundo fazia sentido. Tia Cecília, na verdade, mas Luísa nunca a chamou assim. Era só Cecília – nome de flor e de aconchego. Irmã de sua mãe, vinte anos mais velha, nunca se casara e parecia ter guardado todo o amor do mundo para derramar sobre a sobrinha. Cecília era uma mulher feita de rituais. Passava creme nas mãos todas as noites antes de dormir, usava leite de colônia no rosto rosado, penteava os cabelos longos diante do espelho como se conversasse com o reflexo e usava, sem exceção, o mesmo talco de lavanda desde que Luísa se entendia por gente. Quando Luísa chegava da escola e largava os sapatos pela casa, era o cheiro do talco que a guiava até o...