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Mostrando postagens de agosto, 2025

Bom Dia, Como Você Está?

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A pergunta caiu como folha sobre a mesa da varanda. Nem vento havia, mas lá estava ela: pousada, serena, quase absurda na sua ternura tardia. Ele a leu em voz baixa, como quem testa a delicadeza do mundo com a ponta da língua, como quem precisa aquecer a alma antes de permitir que qualquer palavra se instale no peito. Mas não havia ninguém diante dele. Apenas a xícara morna de café, o jornal esquecido desde a semana passada, e o céu — azul feito lembrança. Chamava-se Miguel, mas quase ninguém o chamava assim. Para uns era “seu Migue”, para outros apenas “vizinho do 32”. Fazia tempo que o nome completo não soava em voz alta, como se os anos tivessem desgastado também a intimidade das palavras. Havia uma solidão antiga nele, daquelas que não nascem de perdas abruptas, mas do lento esvaziar dos dias. A casa seguia a mesma — as plantas, o relógio da cozinha, o sofá afundado no lado esquerdo —, mas o tempo ali parecia andar de lado, como se evitasse encará-lo de frente. Recebera o bilhete e...

A Escrita Como Lugar de Respiro

Há quem diga que a dor aguça a criatividade. Que é no momento do abismo que se encontra a palavra exata, aquela que atravessa a carne e pousa, serena, no papel. Não sei se é sempre assim. Mas sei que, quando tudo parece em ruína por dentro, escrever se torna uma espécie de andaime para o coração: sustenta, mesmo que provisoriamente, aquilo que ameaça desabar. Não nego a importância dos profissionais que acolhem nossas dores com escuta, técnica e presença. São faróis. Mas não posso negar, tampouco, o efeito quase místico que as palavras têm sobre mim. Quando elas vêm — e vêm como se viessem de dentro e de fora ao mesmo tempo — sinto uma espécie de alinhamento entre coração e cérebro. Como se o que dói deixasse de ser um caos indecifrável e passasse a ter forma, nome, contorno. E só por isso, já alivia. É como se, ao escrever, eu oferecesse à minha dor uma casa. Não para prendê-la, mas para que ela não precise mais vagar solta, assombrando tudo. E não é só na dor que isso acontece....

A Mulher Que Pulou a Primavera

Conheci uma mulher que decidiu pular a primavera. Isso mesmo. Enquanto o mundo inteiro se preparava para florescer, ela fazia as malas e desaparecia. Não avisava ninguém. Não deixava bilhete. Apenas sumia, como quem se recusa a participar de uma festa que não escolheu. A primeira vez que fez isso foi no exato dia em que se completava um ano da morte do marido. Ele morreu em setembro, logo no início da estação das flores. Não foi uma tragédia estrepitosa. Nada de acidentes ou hospitais lotados. Foi uma dessas mortes que doem pela delicadeza: ele simplesmente se foi, devagar, com a cabeça encostada no colo dela, como se pedisse desculpas por partir. E foi ali, naquele instante, que a primavera deixou de fazer sentido para ela. As flores viraram insulto. O canto dos pássaros, deboche. A luz das manhãs, uma crueldade. Como continuar sorrindo se ele não voltaria com o vento? Como fingir recomeço se ela ainda carregava o fim? Então, no ano seguinte, ela escapou. Foi parar na Suíça,...

Você Não Pode Ser Meu Céu

Era quase noite quando ela chegou. O sol ainda disputava com a penumbra um último instante de glória, tingindo as janelas do apartamento com tons de ouro envelhecido. Maria abriu a porta com a chave que ainda guardava — um gesto automático, desses que o corpo aprende antes da mente aceitar que não faz mais sentido. Mateus estava na cozinha. Não pareceu surpreso ao vê-la. Apenas ofereceu um meio sorriso, contido, e apontou com o queixo para a chaleira no fogo. — Vai querer chá? Ela concordou com a cabeça. Tinha passado o dia inteiro entre pessoas que falavam demais e diziam de menos. Com ele, sempre foi o contrário. O silêncio era uma forma de presença. Sentaram-se à mesa. Por um instante, nada mais existiu além do vapor que subia das xícaras, lento, como se tentasse costurar o que havia se rasgado entre eles. Nenhum dos dois parecia saber exatamente por que estavam ali, mas também não havia pressa em descobrir. — Ainda escuta as mesmas músicas? — ela perguntou, tocando na bo...

O Quarto de Cima

Era no quarto de cima que ela mais sentia sua falta. Não era apenas a cama vazia, nem o guarda-roupa que ainda guardava suas camisas alinhadas por cor — como ele gostava, quase maníaco em sua organização. Era o tempo ali que parecia outro. Um tempo que hesitava em passar. Na casa toda, a vida tentava seguir. Na cozinha, o cheiro do café de toda manhã. Na sala, a TV falando sozinha. Mas no quarto de cima, o ar tinha outra densidade. Como se respirasse memórias. Ela subia as escadas sempre no mesmo horário. Sentava-se na beira da cama, o corpo ainda ereto, mas os olhos sempre cansados. O sol entrava torto, pousava na poltrona que antes era dele, e deixava tudo com um tom de espera. Foi nesse quarto que, pela primeira vez, ela questionou algo que a acompanhava desde menina: a fé. Antes, bastava fechar os olhos e rezar. Bastava acreditar. Mas agora... Agora, entre as preces e o silêncio, crescia uma dúvida que a consumia sem fazer barulho. Passou a ler tudo que encontrava. Teorias so...

Dona Iracema e o Fim do Laranjal

Dona Iracema era dessas mulheres que já nasciam prontas. Nunca teve tempo pra frescura. Acordava cedo, fazia café forte, lavava roupa sem reclamar da água fria e ainda tinha coragem de sorrir no fim do dia — mesmo com a coluna pedindo arrego. Criou três filhos, cuidou do marido com devoção e nunca deixou faltar um prato de comida, nem que o arroz fosse solitário na panela. Aldomiro, o marido, partiu primeiro. Um infarto, dizem. Ela, serena, segurou-lhe a mão até o último suspiro. E foi ali, naquela cama estreita de hospital público, que sussurrou: — Me espera lá, Miro. Eu ainda chego. Nem que tenha que andar até o fim do mundo. Depois disso, a vida foi só repetição: colher laranja, cozinhar pra ela mesma, lembrar sem chorar. Até que, numa manhã de sol calmo e cheiro de fruta madura, Iracema sumiu. Simplesmente. Não levou bolsa, documento, nem um lenço de reserva. As roupas estavam no varal. A panela, ainda morna no fogão. Desapareceu feito vento. A vila entrou em rebuliço...

Sobreviver é Um Verbo Sem Brilho, Mas Necessário

Não se trata de recomeçar, de florescer depois da dor ou de colher aprendizados no terreno árido da ausência. Às vezes, é só isso: sobreviver. Continuar respirando mesmo quando o ar não tem gosto. Abrir os olhos sem desejar enxergar. Levantar-se da cama porque o corpo, ainda que partido, insiste em não morrer. A sobrevivência após o luto não tem glamour. É silenciosa, lenta e, muitas vezes, secreta. Os outros perguntam como você está — e você aprende a responder com palavras que não dizem nada. “Vou levando.” “Tô tentando.” “Um dia de cada vez.” Fórmulas prontas que encobrem a verdade: não há linguagem suficiente para traduzir a ausência que se arrasta dentro da pele. Sobreviver é comer sem apetite, rir sem leveza, trabalhar com um buraco no fundo dos gestos. É saber que o tempo não cura, apenas arrasta. E que, com sorte, um dia esse arrasto deixa de doer tanto. A vida segue, dizem. Mas omitem que seguir não significa esquecer, tampouco superar. O que se faz é carregar — e isso t...

A Mulher Que Vivia Com os Anjos - 2012

  Ninguém sabia ao certo quando começou. Talvez tenha sido numa manhã de céu anil, dessas que parecem limpas demais para esconder qualquer tormenta. Ou numa noite sem estrelas, quando o silêncio pesa mais do que as palavras. O fato é que, um dia, ela começou a conversar com os anjos. Chamava-se Teresa — nome comum, de mulher comum. Cabelos grisalhos sempre presos num coque apressado, saias largas de algodão e um andar de quem carrega mais do que os ossos podem suportar. Morava na última casa da Rua das Begônias, um sobrado antigo que gemia com o vento, como se também sentisse saudade de algo que não sabia nomear. Os vizinhos cochichavam, claro. Diziam que desde a partida do filho — não sabiam se por morte ou distância — ela mudara. Passava as tardes na varanda, os olhos vagando entre as nuvens, sussurrando coisas que ninguém ouvia direito. Às vezes sorria para o nada. Outras, chorava baixinho, como se alguém lhe acariciasse os ombros enquanto dizia: “calma, Teresa, logo passa”....

Aquela Que Escrevia Para Não Desaparecer

Ninguém mais sabia dizer onde começava a mulher e onde terminavam as palavras. Ela própria já não tinha certeza. Chamava-se — ou fora chamada um dia — de Helena. Mas esse nome andava esquecido nos envelopes, nos cartões, nas chamadas do celular que ela raramente atendia. Última filha de uma família onde as mulheres se acostumaram a silenciar, ela aprendera cedo a deixar escorrer pela garganta tudo aquilo que lhe entalava os dias. Até que, sem qualquer estardalhaço, deixou de engolir. E escreveu. A primeira palavra foi um sussurro no escuro, quase um espasmo. Mas bastou. Era como abrir uma fresta no peito por onde o mundo, ainda que em ruínas, pudesse respirar de novo. Escrever tornou-se hábito, depois ritual, depois corpo. Ela já não sabia se a dor vinha antes ou depois das palavras. Se escrevia para conter o caos ou se o caos se aproveitava da escrita para se instalar com mais elegância. Só sabia que doía menos quando escrevia. E isso lhe bastava. O papel — ou o que o mundo ...

Por Que Não Eu...

Ela se fazia essa pergunta todas as manhãs, antes mesmo de abrir os olhos. A mesma pergunta silenciosa, repetida como um mantra amargo: por que não eu? Era como se o universo, em sua mecânica perversa, tivesse feito uma escolha. E não a escolhera. Ele partira. E ela ficara. Ficara com a casa vazia e os talheres dele ainda no escorredor. Ficara com o som da voz dele nos corredores, que ecoava mais alto justamente pela ausência. Ficara com as roupas, com as cartas antigas, com os sonhos que não se realizaram. E, acima de tudo, ficara com a dor — uma dor tão funda, tão feroz, que às vezes parecia capaz de devorá-la por dentro. — Se era pra alguém ficar… por que não ele? — pensava, encarando a xícara de café que já não tinha gosto de nada. — Por que não fui eu? Não era revolta. Era exaustão. Era o peso de um amor que seguia existindo mesmo depois de ter perdido sua metade. E doía. Doía como se todo dia alguém arrancasse um pedaço de dentro dela e o deixasse sangrando sobre a mesa. ...

Os Quase Famosos do Teatro Sem Nome

  Numa sala escura de um porão adaptado em teatro — que cheirava a mofo, incenso de lavanda e desespero artístico — quatro cadeiras acolhiam quatro corpos derrotados: Amadeu, Lucila, Gerson e Bebel. Eram dois casais. Ou quase. Relacionavam-se quando a bebida, a frustração e o figurino apertado de alguma peça experimental criavam a atmosfera propícia. Tinham histórias, rixas e uma longa folha corrida de fracassos teatrais. — Eu disse que fazer "Romeu e Julieta no Fim do Mundo" usando figurino de plástico bolha era arriscado — resmungou Gerson, abrindo uma cerveja quente. — Arriscado é você querer fazer o Romeu com esse sotaque de vendedor de loja de ferramentas — retrucou Bebel, cruzando as pernas com teatral desprezo. Lucila, a mais sensata (ou menos insana), levantou os olhos da revista de horóscopo: — Mercúrio retrógrado, gente. Tudo explica. — Retrógrado tá é o nosso talento — resmungou Amadeu. — Olha isso aqui! — e sacou um papel amassado do bolso — mais uma cr...