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Mostrando postagens de abril, 2025

Como Passarinho

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Viver, às vezes, é um exercício de leveza contra o peso do mundo. A cada manhã, somos lançados na vida como pequenos pássaros: as asas ainda úmidas do sono, o peito exposto às incertezas do vento, o olhar procurando um galho firme onde pousar o dia. Não nos ensinam a voar. Apenas nos jogam no ar. E é assim que aprendemos – errando a rota, colidindo com vidraças que pareciam céu. Há dias em que o voo é pleno. O vento sopra a favor, o ar parece cúmplice, e o horizonte se desenha em cores suaves. São dias em que o coração se alinha ao compasso da natureza, e viver parece simples como respirar. Mas há outros – e são muitos – em que tudo pesa. O corpo, os pensamentos, os silêncios. Dias em que não há céu bastante. Em que qualquer tentativa de voo termina em pouso forçado. Em que tudo que queremos é um canto seguro, um abrigo onde possamos recolher as asas sem parecer desistência. E mesmo assim, de algum modo, seguimos. Não porque somos invencíveis. Mas porque dentro de nós pulsa algo mais a...

Jogando Conversa Fora

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O calor ainda ondulava nas calçadas quando Teresa e Lourdes arrastaram suas cadeiras de palha para a sombra da mangueira. Era aquele fim de tarde abafado, típico de janeiro, em que o suor brota antes mesmo do corpo se mexer. Sentaram-se como de costume, uma de frente para a outra, os leques improvisados de papelão nas mãos, os chinelos batendo ritmados no chão poeirento. Era o ritual silencioso das duas, conversas jogadas, miudezas do bairro, lembranças que o calor parecia puxar da memória como vapor de chaleira. — Mulher, você viu a nova moça que se mudou na casa da esquina... — comentou Lourdes, abanando-se com mais vigor. — Dizem que é filha daquele homem... como é mesmo o nome dele... Aquele que tocava saxofone nos bailes... Tereza sorriu de canto. Gostava desses papos que começavam do nada e podiam ir parar em qualquer lugar. — Seu Agenor. — Completou. — Tinha um sorriso safado, mas um talento que só vendo... O céu se tingia de laranja e púrpura quando a conversa, entre uma fofo...

Nas Ondas do Mar

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O barco deslizava suavemente sobre as águas, como se soubesse que aquele momento era sagrado. As velas ondulavam sob a carícia do vento brando, e o céu, tingido de um azul infinito, se fundia ao mar em um abraço sem fim. O sol, generoso, derramava seus raios dourados sobre a superfície ondulante, criando reflexos que mais pareciam estrelas dançando sobre as ondas. O mundo ao meu redor parecia suspenso no tempo, como se até a própria natureza compreendesse a solenidade do instante. Segurava nas mãos a urna com as cinzas dele—meu amor, minha alma gêmea, a bússola que sempre me guiou. O peso não estava no objeto em si, mas na infinidade de lembranças que ele continha. Meu peito estava apertado, não pelo vento suave que tocava minha pele, mas pela ausência dele ao meu lado. Como era possível que o mundo continuasse a girar sem ele? E, no entanto, ali estava eu, flutuando sobre aquele oceano sem fim, carregando a essência de quem amei por toda uma vida. A brisa trazia o cheiro salgado do ma...

Quando a Saudade Muda de Margem

Ficamos aqui, entre paredes conhecidas, andando pelos mesmos cômodos, sentindo a ausência latejar nos espaços que antes eram preenchidos por gestos simples. E eles, para onde foram... Em que dimensão andam agora os que amamos e perdemos... É uma pergunta que pesa mais do que qualquer resposta. Não é apenas a saudade que dói. É a dúvida. A dúvida se, do outro lado – seja ele qual for –, também se sentem assim: incompletos, inquietos, saudosos. Porque seria uma dor imensa saber que sentem saudade. Uma dor que transbordaria do que já é quase insuportável. Imaginar que, lá onde estão, carregam a mesma falta, o mesmo nó na garganta, o mesmo impulso de buscar o que já não podem tocar – isso desmonta qualquer armadura. Seria mais fácil acreditar que partiram leves, desprendidos de nós, como se a vida aqui fosse uma casa que, ao ser deixada para trás, logo perde o cheiro, a cor, a lembrança. Talvez essa seja a esperança secreta dos que ficam: que eles tenham encontrado, se não a felicidade...

O Outro Lado da Dor

  Ninguém conta, mas existe um outro lado da dor. Não é um jardim florido, nem uma lição que se aprende com os olhos marejados e o peito cheio de frases feitas. O outro lado da dor é um território estranho, feito de silêncio e rearranjo. A princípio, tudo é ruína: pedras caídas, móveis fora do lugar, palavras que não servem mais. Depois, sem que a gente perceba, uma poeira fina começa a assentar sobre os escombros. Não é paz. Não é cura. É apenas o peso daquilo que não pode mais ser carregado em gritos ou lágrimas. É um cansaço que lentamente vai redesenhando o espaço dentro da gente. No outro lado da dor, o tempo se movimenta de maneira diferente. Não é o mesmo tempo dos relógios. É um tempo disforme, que avança e recua sem aviso, feito uma maré indecisa. em certos dias, parece que nada foi vivido – tudo é pedra, tudo é vazio. Em outros, surgem pequenos gestos quase imperceptíveis: a vontade de abrir uma janela, de responder uma carta antiga, de arrumar uma gaveta, organizar o...

O Que Fazer Com a Saudade

  Dia desses, eu perguntei à minha neta de 13 anos se ela sentia saudade do vovô. Ela me olhou com aquele jeito de quem já entendeu mais da vida do que aparenta e respondeu, sem hesitar: — É claro, vovó. Fiquei em silêncio por um instante, talvez tentando equilibrar a minha saudade com a dela. Então perguntei, como quem tenta escutar a si mesmo pela boca do outro: — E o que tu fazes com essa saudade? Ela pensou um pouco, depois disse algo simples, mas que me atravessou como uma flecha serena: — Às vezes, eu abraço a almofada da cadeira preferida dele. Às vezes, eu fico olhando as fotos. Outras vezes, eu só a deixo ficar comigo, sabe... deixar a saudade ficar. Sem querer curá-la. Só deixar que ela exista — como quem aceita a visita de um velho conhecido que sempre bate à porta sem avisar. E é isso que talvez nos falte, às vezes. Não saber o que fazer com a saudade nos angustia, como se fosse preciso sempre resolver, dar um destino, encontrar um jeito de empacotar e guardar. ...

Separados Por Uma Parede

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Era uma casa como tantas outras, com paredes que abrigavam risos e silêncio, onde o tempo parecia escorrer devagar pelos corredores. A parede central, que separava o quarto do casal da sala, sempre fora apenas mais um elemento estrutural, pintada de um bege comum, sem decorações que chamassem a atenção. Mas agora, ela era tudo. Eles tinham vivido juntos naquela casa por quarenta e oito anos. Cada rachadura no piso, cada marca na pintura, cada móvel fora testemunha de sua história. Mas a morte chegou silenciosa uma noite, como uma brisa que apaga a chama de uma vela. Ele se foi, ali, diante dela. Nos dias seguintes, o luto não era apenas uma ausência; era uma presença palpável, como o peso de uma manta molhada que cobre o corpo e impede os movimentos. A parede agora tinha um significado que ela jamais poderia imaginar. Ele estava do outro lado. Era o que sentia. A vida e a morte, separadas por uma barreira tão fina quanto o ar, mas tão intransponível quanto o oceano. Deitada na cama...

A Cara de Sempre

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Pedro chega em casa e encontra Marina de cara fechada. — Amor, você está espetacular! Foi ao cabeleireiro? — Não. — Como não...? Então é um vestido novo? — Também não. — Já sei! Emagreceu! — Não. Engordei dois quilos. — Esqueci alguma data importante? — Nada disso. — Então por que essa cara? — É a minha de sempre. Você que nunca presta atenção. Pedro coça a cabeça, olha de novo para Marina e suspira. — Ah, bom! Tem razão... Pensei que hoje pudesse estar diferente. Silvia Marchiori Buss    

Somos Ilhas

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Cada um de nós é um território único, com suas paisagens internas feitas de memórias, sonhos, cicatrizes e esperanças. Carregamos praias de afeto, onde os vínculos repousam como conchas deixadas pelo tempo; montanhas de desafios que escalamos em silêncio; florestas de pensamentos que crescem e se entrelaçam. Ventos de esperança sopram, às vezes suaves, outras vezes impetuosos, renovando o ar e soprando folhas secas da alma. Mas nenhuma ilha existe sem o mar. A água que nos cerca — feita de relações, circunstâncias, afetos e trocas — espelha o que projetamos. É um espelho vivo e instável que nos responde. Se cultivamos alegria, autoestima e generosidade, atraímos mares límpidos. Ondas suaves nos visitam com ternura, trazendo à tona novas possibilidades, conexões sinceras, encontros que aquecem. Por outro lado, se nos deixamos enredar pelo medo, pela mágoa ou pelo ressentimento, a correnteza se torna espessa. O mar ao redor escurece, não por vingança, mas por ressonância. Ele não nos pu...

Nós, Rios em Movimento

Nós somos como um rio. Não um rio turístico, desses com margens floridas para visitação, mas um rio real — que escava a terra, se curva, avança, retrocede, arrasta galhos, recolhe folhas secas, transborda, seca, renasce. Ora estamos aqui, contornando uma pedra, ora estamos lá, atravessando um campo esquecido. E nesse trajeto, que nunca é o mesmo por muito tempo, tocamos margens que nem sempre escolhemos. Há trechos de terreno fértil, onde brotam amizades, ideias, amores inesperados. Há beiras desertas, onde o silêncio é espesso e tudo que se vê são marcas de ausências. O rio não para. Não por teimosia ou por esperança, mas porque esse é o seu modo de ser: continuar. Mesmo quando tudo ao redor parece querer estagnar. E nós, que somos feitos do mesmo movimento, também seguimos — mesmo nos dias em que avançar parece não fazer sentido. No início, nossa água é limpa, rápida, quase ingênua. Corremos cheios de força, querendo alcançar o mar sem entender o que isso significa. Mas o tempo — ess...

Caixinha de Surpresa

A cada manhã, a vida nos entrega uma caixinha. Pequena, discreta, sem laço nem bilhete. Apenas pousa ali, na soleira do dia, esperando que a abramos. Às vezes, a tampa resiste. É preciso força, coragem, ou mesmo um pouco de raiva acumulada para vencê-la. E o que salta de dentro não é o que esperávamos: um problema inesperado, uma saudade antiga, uma notícia dura, um silêncio difícil de suportar. Nessas horas, a caixinha parece mais uma armadilha do que um presente. E a gente se pergunta por que, de novo, a surpresa veio embrulhada em dor. Mas há dias em que a caixa se abre como quem sussurra. Sem esforço, sem alarde. E dentro dela está um gesto de afeto, um encontro improvável, um instante de paz no meio do caos. Um pôr do sol visto por acaso, uma gargalhada partilhada, um café que esquenta mais do que o corpo. Coisas simples que, no fundo, são tesouros. Nossos dias são assim: feitos de altos e baixos, sorrisos que nascem mesmo depois das lágrimas, e lágrimas que lavam o caminho para n...

Encontro de Ausências

Espero que nos encontremos. Não num reencontro planejado, nem anunciado com hora marcada ou mesa reservada. Espero que nos encontremos assim, de repente, num espaço que não pede explicação. Eu te contaria, não com lagrimas, mas com o silêncio carregado de tudo o que tua ausência fez brotar em mim. Não falaria da dor como quem pede consolo, mas como quem segura entre os dedos um fio invisível que nunca arrebentou. Diria das manhãs que aprendi a atravessar sozinha, das noites que desenharam teu contorno no escuro, da cadeira que não mais range, do café que esfria sem urgência. E tu, talvez, me contasses da tua leveza, essa que eu tanto desejei que fosse tua depois da partida. Quem sabe me dissesses que o tempo, do lado daí, não se arrasta como o daqui. Que a saudade aí não fere, só pulsa. Que o amor, não morre nem se apaga, apenas muda de estado. Não te pedirei explicações, nem tu me cobrarias por ter seguido adiante com um passo manco. Apenas sentaríamos – tu e eu – como tantas vezes, s...

Onde Você Está...

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Ele acorda todos os dias antes da cidade, como se ainda tivesse algo para preparar. O café é o mesmo — forte, silencioso. A casa inteira guarda seus vestígios: uma xícara que ninguém mais toca, a almofada que ele não permite que arrumem, o livro com a folha marcada na página de sempre. As ruas já mudaram tantas vezes de nome, de cor, de cheiro, mas ele ainda percorre aquelas mesmas esquinas, os olhos varrendo vitrines, sacadas, janelas. Como se a qualquer instante ela fosse surgir, soprada pelo acaso. "Você gosta de lilases", ele pensa, sempre que passa pela floricultura da esquina. Ainda compra um buquê de vez em quando, e deixa num banco qualquer do parque. Um gesto tolo, talvez. Ou ritual. Ou saudade que vaza em forma de pétala. Às vezes, escreve cartas que nunca envia. Palavras simples, só para não esquecer como é conversar com ela: "Hoje vi uma moça de cabelos encaracolados descendo do bonde. Usava um casaco amarelo, como o seu. Meu coração tropeçou nela por um segu...

As Pílulas Mágicas

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Dona Estela morava sozinha num apartamento pequeno, silencioso e arrumado demais para alguém que já teve uma casa cheia Viúva havia anos, os filhos, crescidos e distantes, seguiam suas rotas – às vezes lembravam do seu aniversário, às vezes não. A televisão era sua companhia, mas o que realmente a mantinha de pé, ela dizia, eram as pílulas mágica. Chamava assim, com certo humor melancólico, os antidepressivos que tomava todas as manhãs, religiosamente. - Se não fosse por elas, eu evaporava – dizia à vizinha, com um sorriso curto. Naquela terça-feira, Estela desceu ao pátio do prédio para arejar um pouco. O céu estava encoberto, e o vento trazia um frio tímido, desses que convidam à introspecção. Sentou-se no banco de cimento perto dos canteiros, ajeitando a manta sobre os ombros. Olhava as plantas com olhos vazios, sem realmente vê-las. Foi quando Clara apareceu, carregando uma sacola de pão fresco e um brilho curioso nos olhos. Jovem, recém-chegada ao prédio, morava dois andares acim...

A Vida Não Pede Licença

A vida não consulta ninguém. Não bate na porta, não deixa bilhete, não explica as regras. Ela simplesmente vai. Anda por trilhas que não traçamos, dobra esquinas sem avisar, tropeça em nossos planos com a A leveza de quem não tem culpa. Você pode querer parar. Pode sentar-se no meio do caminho e cruzar os braços, esperando que tudo faça sentido. Mas ela segue. Respira, arfa, pulsa dentro de nós — mesmo quando não queremos mais acompanhar. Mesmo quando já não entendemos para onde estamos indo. Não somos os donos da própria vida. Essa ideia romântica de que basta decidir, escolher, planejar — é bonita, mas frágil. Há forças que nos atravessam sem pedir opinião. O tempo, o acaso, as perdas, os encontros. A dor e a beleza de existir nos arrastam, como correnteza mansa ou fúria de rio em cheia. E a gente vai, aos trancos. Tentando entender. Tentando acompanhar. Às vezes protagonistas, às vezes apenas espectadores de nós mesmos, como se assistíssemos à nossa história sendo escrita por mãos i...

Esperança No Tempo

O tempo não me quer mais. Ele segue, impiedoso, carregando os dias nos ombros, deixando poeira onde antes havia promessas. E eu...eu fiquei. Fiquei como quem teve a alma amputada, como que perdeu um membro invisível e sente a dor fantasma de um amor que ainda pulsa, mesmo ausente. Estou parada. Ainda aqui. Esperando. Esperando que, de alguma forma – mesmo que seja contra todas as lógicas do mundo – você volte. Q eu volte no vento que atravessa a janela, no cheiro do café que insiste em ferver de manhã, no sonho que não me deixa dormir em paz. Que volte no silêncio. Ou no barulho que só você saberia decifrar. O tempo corre, mas eu não. Eu me recuso a acompanha-lo enquanto você não estiver comigo. Porque há amores que o tempo não apaga, só tenta esconder. E há esperas que não são fraqueza, são fidelidade àquilo que foi – e talvez, quem sabe, ainda possa ser. Se um dia você voltar, vai me encontrar aqui: com a dor nos olhos e o coração inteiro, apesar das rachaduras. Porque mesm...

Quando a Solidão Pesa

Há momentos em que o silêncio da casa não consola, apenas ecoa a ausência. A xícara de café esfria esquecida, o tempo se arrasta lento, e o coração pesa como se carregasse o mundo inteiro. São nesses instantes que a solidão deixa de ser pausa e vira fardo. Não é mais o retiro escolhido, mas a falta que lateja. A ausência de alguém para dividir um olhar, uma lembrança, um simples “como você está hoje?” pode tornar um dia inteiro mais longo do que a eternidade. A solidão pesa mais quando temos muito a dizer, mas ninguém para ouvir. Quando a noite chega e, em vez de descanso, traz memórias que insistem em se sentar ao nosso lado. Quando até o som da própria respiração parece alto demais, porque o que falta mesmo é outra respiração próxima, dividindo o mesmo espaço de afeto. Mas é aí, nesse fundo do poço invisível, que a resiliência começa a se erguer. Primeiro como um sussurro — uma voz interna que ainda acredita. Um fio de coragem que nos diz: “resista mais um pouco”. Não é força her...

O Segredo

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Era uma manhã abafada de verão quando a família Monteiro se reuniu pela última vez sem saber que o mundo como conheciam estava prestes a desmoronar. Na casa ampla e antiga, com janelas pintadas de azul descascado e o cheiro característico de café passado na hora, reinava uma atmosfera de falsa harmonia. Eduardo e Helena Monteiro, o patriarca e a matriarca, sentavam-se na cabeceira da longa mesa de madeira, enquanto as quatro filhas ocupavam seus lugares habituais. Clara, a mais velha, era uma advogada bem-sucedida, a personificação do orgulho familiar. Sofia, a segunda, era artista plástica, cheia de ideias e impulsos que muitas vezes escapavam à compreensão dos pais. Marina, a terceira, era enfermeira e tinha uma doçura que equilibrava os temperamentos fortes das irmãs. E então havia Isadora, a caçula, uma jovem aparentemente reservada que parecia carregar em seus olhos castanhos uma melancolia insondável. Os Monteiro tinham seus conflitos, como toda família, mas o segredo que Isadora...

Somos ilhas

Cada um de nós é um território único, com suas paisagens internas feitas de memórias, sonhos, cicatrizes e esperanças. Carregamos praias de afeto, onde os vínculos repousam como conchas deixadas pelo tempo; montanhas de desafios que escalamos em silêncio; florestas de pensamentos que crescem e se entrelaçam. Ventos de esperança sopram, às vezes suaves, outras vezes impetuosos, renovando o ar e soprando folhas secas da alma. Mas nenhuma ilha existe sem o mar. A água que nos cerca — feita de relações, circunstâncias, afetos e trocas — espelha o que projetamos. É um espelho vivo e instável que nos responde. Se cultivamos alegria, autoestima e generosidade, atraímos mares límpidos. Ondas suaves nos visitam com ternura, trazendo à tona novas possibilidades, conexões sinceras, encontros que aquecem. Por outro lado, se nos deixamos enredar pelo medo, pela mágoa ou pelo ressentimento, a correnteza se torna espessa. O mar ao redor escurece, não por vingança, mas por ressonância. Ele não nos pu...

E O Universo Vai se Equilibrando...

 Enquanto um coração se cala, outro começa a bater. Enquanto olhos se fecham para sempre, outros se abrem pela primeira vez, espantados com a luz do mundo. O universo, esse maestro silencioso, rege o compasso de chegadas e partidas como se cada nota de vida e morte fosse parte de uma sinfonia precisa. E assim, ele se equilibra — não com justiça, não com lógica, mas com uma dança que não pede permissão para continuar. Nascer é um impacto. Um mergulho abrupto num mundo onde se respira ar, se sente dor, frio, fome, ausência. É um rasgo. Uma travessia de um ventre escuro e seguro para a vertigem da existência. Talvez por isso alguns chorem mais alto ao chegar — como se já soubessem o peso que é viver. Morrer, por outro lado, é um desaparecer. Um apagar de vela, às vezes com suavidade, às vezes com violência. Para quem fica, é ausência tatuada no tempo. Para quem parte… ninguém sabe. Mas há quem acredite que é também um nascer — em outra frequência, em outra paisagem. E talvez estej...

Queria Ser Uma Montanha

  Daquelas antigas, de alma rochosa e silêncios longos. Ser cume, ser pedra, ser a lentidão que observa sem pressa. Talvez assim eu entendesse melhor o tumulto lá embaixo — as buzinas que se confundem com gritos, os rostos que se esbarram sem se ver, os afetos que se perdem entre atalhos de raiva e pressa. Do alto, talvez tudo fizesse mais sentido. Ou talvez não fizesse nenhum — mas ao menos haveria distância suficiente para não me doer tanto a desordem. Porque aqui, onde tudo acontece no mesmo nível, onde os choques são corpo a corpo, é difícil respirar. As pessoas se atropelam com palavras, se ferem com pequenas escolhas, e seguem — como se nada pudesse ser feito. Uns se afinam com a aspereza, parecem até prosperar nela. Outros apenas tentam não se desfazer por dentro. Talvez ser montanha fosse uma forma de contenção. Ser fronteira, ser divisão natural entre o que ruge e o que sussurra. Quem sabe, com sorte, até um abrigo. Não para salvar ninguém, porque isso seria pretensão....

Ao Entardecer

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Ao entardecer, ela se sentava na varanda de trás, onde o sol costumava pintar de ouro as folhas mais altas do jardim. O mesmo sol que um dia, lá atrás, lhe acordava a pele jovem e o corpo cheio de vontades. Agora, era outro tipo de calor que a tocava — mais brando, quase tímido, como se pedisse licença. Mirava o céu, que lentamente trocava de cor, e pensava: quando foi que o meio-dia passou tão depressa? Durante anos, viveu sob o sol do meio-dia. Forte, apressado, sem tempo para contemplações. Era mãe, companheira, profissional, dona de horários, de metas, de urgências. Dormia pouco, corria muito. O mundo girava no compasso da sua energia. Nunca questionou os dias — apenas os preenchia. Pensava que o entardecer era coisa para os outros. Mas ele veio. Sem anúncio. Chegou com sutilezas: a necessidade de repousos mais longos, as rugas que pareciam mapas de histórias que só ela conhecia, a memória a brincar de esconde-esconde, e um silêncio diferente nas manhãs, quando ninguém mais p...

Na Real, O Que Fazemos Aqui

 Somos os únicos seres que sabem que vão morrer. E, ainda assim, sonhamos. Isso já diz muito sobre quem somos. Enquanto as árvores crescem em silêncio e os rios correm sem se perguntar para onde, nós tropeçamos na própria existência tentando entender o sentido disso tudo. Os outros seres simplesmente são — nós, não. A gente quer ser algo, alguém, deixar um rastro, uma marca, uma história. Talvez seja essa inquietação o que nos separa do resto. Ou talvez seja justamente o que nos aproxima: a vontade de permanecer, de florescer, mesmo sabendo que o tempo nos leva a todos. Por que estamos aqui? Não há manual de instruções nem resposta fechada. Talvez nem tenha um “porquê” — e isso não tira o brilho da pergunta. Mas se houve mesmo uma escolha, se fomos de fato “escolhidos”, então não deve ter sido pra viver no piloto automático, nem pra seguir um roteiro que não escrevemos. Talvez a razão esteja no gesto pequeno. Naquilo que só nós podemos fazer: escutar com o corpo inteiro, olhar de v...

A Velha e o Sapateiro

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No fim da Rua das Camélias, espremida entre a farmácia velha e o armazém de ferragens, havia uma pequena sapataria de letreiro desbotado onde se lia, com letras quase apagadas: “Conserta-se o que vale a pena”. Ali trabalhava Raul, um rapaz de trinta e poucos anos, rosto sereno, olhos escuros que viam fundo e mãos que sabiam dar nova vida a tudo que parecia gasto — botas, chinelos, sapatos de salto quebrado e, dizem, até corações. Foi num fim de tarde úmido de novembro que Dona Lídia entrou pela primeira vez. Trazia nos olhos o cansaço de quem já vivera muito e com pouca alegria. O corpo, miúdo e encolhido, parecia carregar mais do que os anos podiam explicar. Nos braços, um par de sapatos de salto grosso, antigos, com o couro estourado e as solas quase podres. — Ainda dá jeito? — perguntou, quase sem esperança. Raul levantou os olhos devagar e olhou não para os sapatos, mas para a mulher. — Sempre dá, Dona. Só precisa ver se a senhora ainda quer caminhar com eles. Ela quase sorriu. — J...

Reorganizando os Dias

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A casa não ficou mais silenciosa. Ela ficou surda. Dora sentia que o tempo tinha perdido a compostura desde que ele se foi. Não o tempo dos relógios — esses continuavam batendo com a mesma teimosia de sempre —, mas o tempo dentro dela, o que antes dançava leve com as manhãs e ria alto com os pássaros na varanda hoje não existia mais. Ela sempre foi professora de língua portuguesa, dessas que corrigem mentalmente placas de rua e escrevem bilhetes com vírgulas nos lugares certos. Amava ensinar. Mais ainda, amava ver a faísca nos olhos de um aluno quando compreendia um poema difícil. Dedicou décadas à sala de aula, à escola pública, às reuniões pedagógicas, aos cafés apressados no recreio. Quando se aposentou, sentiu um pequeno medo do vazio, mas ele — Luiz — estava lá, pronto para preenchê-lo com passeios pela cidade, tardes de leitura em dupla, receitas improvisadas e risadas que ainda ecoam nos azulejos da cozinha. O dia da morte de Luiz foi um desses que a gente não antecipa nem em p...

Aurora, o Silêncio

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Aurora aprendera desde cedo que amor não era um trovão, mas uma brisa contínua. Era filha de uma mulher doce e de um homem de poucas palavras, e cresceu acreditando que as coisas boas da vida vinham devagar, no tempo certo, como o amadurecer de uma fruta ou o desabrochar de uma flor. E assim viveu. Foi aos trinta anos que encontrou Raul. Nada de fogos, nada de promessas infladas. Ele chegou com calma, olhos de quem entende o silêncio, mãos firmes de quem sabe amparar. Juntos, construíram um cotidiano repleto de gentilezas e rituais: o café passado com cuidado, o jornal lido a dois, o passeio de mãos dadas nas tardes de domingo. Amor de costura fina, ponto a ponto, sem pressa. Viveram assim por décadas. E, quanto mais o tempo passava, mais Aurora temia. Não pela morte em si, que para ela era como o inverno – uma estação inevitável. Mas pelo que vinha depois. Aurora temia ser a última. Sentia na pele, no sopro do vento, no olhar cansado de Raul, a aproximação do fim. Rezava em silêncio, ...

A Mulher de Olhos de Cristal

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Naquela casa de paredes gastas e janelas sempre abertas, tudo tinha cor. A luz entrava mansa pela manhã, como se pedisse permissão para tocar os retratos, as cortinas costuradas à mão, os livros empilhados em cantos improváveis. E havia ela — a mulher que transformava a poeira em brilho e os dias comuns em pequenos milagres. Chamavam-na de mãe, mas ela era mais. Era o laço e a lâmina, a voz e o silêncio, o porto e o vento. Tinha olhos de cristal, diziam. Porque enxergava o que ninguém mais via. Achava graça no que para os outros era só rotina. A dor, ela não negava, mas colocava sobre a dor um cobertor de palavras simples, como quem diz: "Vai passar, como passa a chuva." Foi justamente a chuva que não passou. Naquela noite, o temporal chegou sem avisar. Veio rasgando o céu, levando a luz, os fios, os muros baixos da vizinhança. O rio, que antes murmurava preguiçoso nos fundos da cidade, ergueu-se como fera despertada. E no meio da correnteza, sem testemunhas além da própria n...

Tem Dias Que Não Dá Para Sorrir

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Tem dias que o sol nasce, mas não chega. Fica preso num céu qualquer, acanhado, como se soubesse que não é bem-vindo. Sonia acordou assim, com o dia escondido dentro dela. A casa inteira parecia um espelho da ausência. O café esquentava só por teimosia, a chaleira apitava como quem grita socorro, e as paredes, cúmplices silenciosas, fingiam não notar a cadeira vazia. Era o terceiro mês desde que ele se foi. E ainda doía como se fosse ontem. Não um ontem recente, mas um ontem antigo, fundado no osso, cravado na pele já fina pela idade e pelo cansaço. O luto de Sonia não era um véu, era um bicho. Não respeitava hora, nem reza. Chegava rosnando nas manhãs e cravava os dentes à noite. Não aceitava barganha. Roubava o sono, e nos raros momentos de vigília, deixava apenas o eco: "Por que ele e não eu?" Ela parou de falar com o espelho. O sorriso, aquele velho conhecido, não habitava mais sua face. E se alguém perguntava se estava bem, ela respondia com silêncio — o único idioma pos...

Quando as Sinapses Piram

Tem dias em que a cabeça parece uma avenida em horário de pico: buzinas de pensamentos, motos cortando pela calçada da lógica e uma chuva fina de informações incessantes que não pede licença para cair. A gente acorda, abre os olhos e já começa o bombardeio: mensagens, tarefas, prazos, dúvidas existenciais e notificações inúteis (por que mesmo aceitei aquele grupo do bairro?). As sinapses, coitadas, tentam se virar. Pulam de um neurônio pro outro como se estivessem jogando amarelinha. Mas chega uma hora em que não dá mais. Elas piram. Dá aquele tilt. Um apagãozinho leve. Um “o que eu ia fazer mesmo?” no meio da cozinha. Um “qual é a palavra mesmo?” no meio da frase. Um “por que eu abri essa aba?” diante da tela. Curto-circuito neural. É como se o cérebro dissesse: “Chega. Eu preciso de férias. Ou, pelo menos, de um chá e um silêncio decente.” A verdade é que estamos vivendo um tempo de excessos. De tudo. Informação, expectativa, velocidade. O mundo exige atualização constante — mas o cé...