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Mostrando postagens de novembro, 2024

Doente de Mim

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Acordei com o peso do mundo inteiro em cima de mim. E não era exagero, não. Era exatamente isso: o mundo tinha me engolido e resolvido fazer morada nas minhas costas, como se eu fosse uma tartaruga emocional. O despertador gritava na cabeceira, anunciando mais um dia inútil de luta contra o meu pior inimigo: eu mesma. Minha rotina começava sempre do mesmo jeito. Abria os olhos e pensava: Por que não desligaram a fábrica de almas na fila errada? Depois me lembrava que, na verdade, até tentei pedir o reembolso, mas a política divina não aceita devoluções. O que me restava? Encarar mais um dia com a graça de uma lagarta que nunca vai virar borboleta. Me levantei da cama e fui direto ao espelho. Encarei aquela figura pálida e desgrenhada. A imagem me devolvia um olhar de recriminação, como se dissesse: Você de novo? Balancei a cabeça e respondi baixinho: — Pois é, minha filha. Também não estou feliz com isso. Decidi que precisava fazer algo diferente. A monotonia estava me matando mais rá...

Vidas impossíveis

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Era uma tarde abafada de novembro quando Laura, ao arrumar o sótão da casa da avó, encontrou um velho diário de capa azul. O couro estava rachado pelo tempo, e as letras douradas do título, “Vidas Impossíveis”, ainda brilhavam com uma estranha vitalidade. A curiosidade pulsou em seus dedos enquanto folheava as páginas amareladas.  O diário não era um relato comum. Era uma coleção de histórias que desafiavam a lógica. Em cada página, uma vida distinta era narrada, com detalhes minuciosos e intensamente vívidos. Havia um relojoeiro que podia parar o tempo, uma mulher que conversava com as estrelas, um pescador que encontrava cidades submersas em seus mergulhos e um homem que vivia simultaneamente em dois corpos. Laura mergulhou na leitura, fascinada. Porém, algo a inquietava. Pequenos detalhes nas histórias pareciam coincidir demais com lembranças de sua própria família. Na terceira noite lendo o diário, Laura chegou a uma página que a fez estremecer: uma história sobre uma jovem que...

Óculos, Celular e Carteira

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Jorge era um homem pleno. Sua vida fluía como um rio em dias de primavera: tranquila, abundante e cheia de promessas. Empresário respeitado, pai amoroso, amigo generoso, ele carregava consigo um brilho que parecia contagiar todos ao seu redor. Nada em sua vida parecia pequeno ou insuficiente; cada detalhe fazia parte de uma construção sólida e cheia de propósito. Naquela manhã de terça-feira, Jorge saiu de casa como de costume. Vestiu o terno impecável, ajeitou os óculos no rosto, colocou o celular no bolso do paletó e verificou rapidamente o conteúdo da carteira: um cartão de crédito, uma foto dos filhos ainda pequenos, alguns trocados e um recibo amassado de um jantar especial com sua esposa. Objetos banais, mas que, juntos, contavam parte da história de sua vida. Quando o telefone tocou naquela tarde, anunciando o acidente, o mundo de sua família desabou. Não houve aviso, preparação ou despedida. A morte chegou como um ladrão: silenciosa e implacável, arrancando Jorge de seus dias p...

Tirando o soluço do peito

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A primeira vez que ele a viu, ela penteava os cabelos na varanda de uma casa pintada de amarelo. A rua era modesta, mas quando ela sorria, parecia que até os paralelepípedos ganhavam vida. Foi naquele instante, sob a luz dourada de um pôr do sol, que Raul teve certeza: amaria Cecília para sempre. E assim foi. Casaram-se jovens, enfrentaram as dificuldades típicas de quem começa a vida com mais sonhos do que certezas. Ele, dedicado ao ofício de marceneiro, transformava a madeira em arte. Ela, professora, moldava futuros nas salas de aula. Entre os dois, havia mais do que amor: havia parceria, respeito, e aquela cumplicidade que dispensa palavras. Os anos passaram. Criaram filhos, ganharam netos e, com isso, muitas histórias. Já aposentados, decidiram que era hora de realizar o sonho de viajar juntos para a Europa. Paris, Roma, Lisboa... Cecília adorava Fernando Pessoa e dizia que precisava sentir o Tejo para entender seus versos. O embarque foi uma festa. Cecília, com seus olhos ainda b...

O piano silencioso

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Na sala principal de uma velha casa no bairro mais antigo da cidade, repousava um piano de cauda. Grande, negro e brilhante, parecia absorver toda a luz das manhãs que atravessavam as cortinas desbotadas. Era uma peça imponente, mas silenciosa. Havia anos que ninguém tocava suas teclas. Pertencia a Dona Beatriz, uma mulher de oitenta e poucos anos, que andava com passos curtos e a memória esburacada. Ela morava sozinha, e resistia à insistência dos filhos em vender o velho piano. - "Este piano me conhece mais do que vocês", dizia, com um tom que calava qualquer resposta. Beatriz fora uma pianista renomada em sua juventude. Seus dedos tinham dançado pelos palcos do mundo, arrancando aplausos que faziam tremer os lustres das casas de ópera. Mas a vida, sempre imprevisível, a afastara do palco. Primeiro, a morte do marido. Depois, a necessidade de criar os três filhos. E, por fim, as mãos que começaram a tremer com a idade. Mesmo assim, o piano continuava ali. Não como um instru...

Poeira da Vida

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Ele sentia o calor do sol em sua pele enquanto caminhava pelo campo, os pés descalços afundando na terra seca. O aroma da grama queimada pelo verão misturava-se ao das flores selvagens que resistiam teimosamente ao calor. Era como se cada passo o conectasse mais ao que restava do seu ser, como se a terra sugasse a vida por seus calcanhares. No entanto, não era o campo que o fazia refletir sobre o tempo que lhe escapava. Eram suas mãos. Mãos que antes sustentaram o mundo- ou pelo menos a sua pequena parcela dele. Elas haviam construído, acariciado, lutado. Agora, observava como a pele se tornara fina e translúcida, revelando um mapa de veias e linhas que mais pareciam trilhas de uma jornada longa demais. Ao longe, avistou uma árvore solitária, imponente, com galhos que pareciam braços erguidos ao céu em um pedido de clemência. Ele se aproximou devagar, sentindo o peso de cada ano sobre seus ombros. Quando chegou, sentou-se sob sua sombra, deixando o vento brincar com seus cabelos ralos....

Tsunami

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A onda veio para tirar a paz, mas também veio para mostrar a força que a mulher nunca pensou que tivesse. Ela afundava e, ao mesmo tempo, tentava nadar. Cada respiração parecia se perder no sal do que ela havia perdido. As memórias dançavam em sua mente, fragmentos de momentos doces e difíceis, lembranças que queria esquecer e outras que queria segurar para sempre. Mas o tsunami interno não fazia distinção, levava tudo que podia, deixando apenas destroços e um vazio dolorido onde antes havia certeza. E assim, Luciana foi levada, consumida, aniquilada por essa força. O tsunami não a permitia descansar, ele a movia como uma folha á deriva, sem rumo, sem propósito. Nessa devastação, começou a se questionar se haveria “depois”, um momento em que essa força, enfim, desistiria dela. Luciana se perguntava se, depois da destruição, haveria algo dela que valeria a pena reconstruir. Conforme os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses, algo inesperado começou a acontecer. No mei...

O Peso da Chuva

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Manuela estacionou o carro próximo à entrada da trilha, como fizera tantas vezes no passado. O barulho incessante da chuva parecia ecoar os pensamentos confusos que martelavam em sua mente. A água escorria pelas folhas das árvores, criando pequenos riachos que serpenteavam pelo chão irregular. As gotas que caíam sobre seu casaco pareciam lágrimas, como se a natureza entendesse o peso que ela carregava. Caminhar por aquela trilha era um ritual que marcara os anos de sua juventude. Nos tempos de faculdade, ela e os amigos costumavam rir alto, cantar e discutir sobre política e literatura enquanto percorriam aquele caminho. Eles eram jovens, invencíveis, e acreditavam que o mundo se dobraria aos seus ideais. Hoje, porém, Manuela caminhava sozinha. Quase cinquenta anos, mãe solo, e com um arrependimento que jamais confessaria em voz alta. A trilha parecia mais longa agora, ou talvez fosse o peso da memória que dificultava os passos. Cada curva trazia lembranças que se desenrolavam como um ...

Luzes Paralelas

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Era uma vez dois universos que, em algum canto secreto do cosmos, espelhavam-se. Chamavam-se "Luzes Paralelas". Em cada um deles, uma jovem e um rapaz caminhavam por suas vidas, separados por uma fronteira invisível. Eles eram como reflexos, seguindo os mesmos passos, partilhando os mesmos sonhos e as mesmas dores, mas sem nunca se verem, sem sequer saberem da existência um do outro. Ela vivia em um mundo banhado pela luz dourada de um sol suave, onde cada amanhecer se derramava em tons quentes e reconfortantes. Seus dias eram preenchidos por pequenas rotinas: caminhadas à beira do rio, risos entre amigos e noites tranquilas sob um céu estrelado. No entanto, em momentos de silêncio, algo dentro dela pulsava como uma saudade de algo que nunca vivera. Havia um vazio, um anseio sem nome, uma sensação de que faltava uma peça essencial em seu mundo dourado. Ele, por outro lado, existia em um mundo de luz prateada, onde a lua era sua companheira constante, e os dias passavam como s...

O Amor de Botão

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No coração de uma cidade grande, onde a pressa ditava o ritmo e as luzes das telas refletiam em rostos apagados, Aurora vivia cercada por máquinas de alta tecnologia. Engenheira de sistemas, sua especialidade era criar soluções tecnológicas que prometiam facilitar a vida das pessoas. Sua última criação, um aplicativo chamado "Eros", era o auge da eficiência: juntava casais com base em compatibilidades matemáticas. "Encontre o par perfeito com um clique!", anunciavam as campanhas espalhadas por toda a cidade. Aurora, entretanto, vivia um paradoxo. Enquanto sua invenção era aclamada como uma revolução no amor, ela sentia um vazio crescente. Observava como os usuários do "Eros" se comunicavam com mensagens prontas, risos programados e encontros que pareciam mais entrevistas do que conexões verdadeiras. Era como se as pessoas se transformassem em peças intercambiáveis, obedecendo a padrões estabelecidos pela máquina. Um dia, durante uma pausa para o café, Aur...

A Jogadora Martina e seu amigo Marquinhos, o Cacto

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Martina, uma jovem jogadora de vôlei, tinha uma história única que a acompanhava dentro e fora das quadras. Quando era apenas uma menina tímida, seus pais , percebendo sua dificuldade em se abrir com os outros, levaram-na para conhecer Dona Luísa, a dona da famosa Casa Torta. A casa era uma verdadeira obra de arte: com paredes inclinadas, janelas desalinhadas, piso em ziguezague e, é claro, o protagonista da casa, um cacto torto. Dona Luísa, com seu sorriso acolhedor e sua sensibilidade, contou à Martina a história daquele cacto. Ele havia sido um presente de Marcos, um amigo querido e esperto, que o encontrara em um terreno baldio. Apesar de sua forma e de suas condições difíceis, Marcos acreditou que o cacto tinha potencial para morar na casa torta. Com paciência e cuidado, plantou-o em um vaso, e o pequeno cacto prosperou. Dona Luísa o batizou de "Corajoso Marquinhos", em homenagem ao amigo que sempre via o melhor em tudo e enfrentava a vida com determinação. Para Dona Luí...

Despida

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Sara despertou com uma estranheza que lhe invadia os sentidos – uma sensação desconhecida, mas curiosamente prazerosa. Abriu os olhos, que pareciam rasgar o rosto ao buscar a luz que, quem sabe, escapasse por uma fresta da janela: um raio de sol, o brilho de uma estrela... mas nada. Tentou ouvir os sons familiares, as saracuras que sempre habitavam o arvoredo ao redor de sua casa, mas tudo estava quieto. Nem o aroma de café, companheiro constante das manhãs, chegava-lhe às narinas. Sentiu-se, então, despida. Despida da visão, despida da audição, despida dos cheiros. Completamente despida. Um leve arrepio percorreu seu corpo; espiou por baixo das cobertas e viu-se sem vestes, nua como veio ao mundo. Mas não era apenas a nudez da pele que a envolvia – era uma nudez mais profunda, uma despida dos pudores que a vida inteira a envolveram, das malícias que a sociedade lhe impôs, dos julgamentos e culpas que acumulou como se fossem parte de sua própria carne. Sentiu, pela primeira vez, sua pe...

O Guarda- Livros

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Seu Ubaldo foi rejeitado pela mulher quando se viu impossibilitado de cumprir o “compromisso” de marido. Um problema de saúde o impedia de “apagar o fogo” de Sofia, sua segunda esposa. Sofia era uma mulher jovem, cheia de vitalidade, com uma “retaguarda” generosa e um par de seios que pareciam dois melões maduros e suculentos, prontos para serem admirados. Seu Ubaldo, já com certa idade, havia deixado a primeira esposa, com quem teve dois filhos, pela atraente Sofia. A jovem, porém, era astuta. Chamava-o de “paizinho” não por afeição, mas pelo status e segurança que ele oferecia, especialmente no escritório de contabilidade onde trabalhava. No início, Seu Ubaldo ainda conseguia corresponder à sensualidade de Sofia, que, mesmo assim, escapava para encontros com outros mais jovens, o que todos ao redor sabiam, exceto o próprio “babão”, que preferia ignorar. Ele a conheceu no escritório onde trabalhava, um dos mais importantes de Santo André. Sofia, recém-chegada do Norte e buscando uma v...

A Grande Ilusão

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Lúcia sempre sonhara com o brilho de Nova York. Vinda de uma pequena cidade do interior, onde seu talento para o canto era motivo de orgulho, acreditava que o mundo estava à sua espera para ouvir sua voz. Quando chegou à cidade, deslumbrada pelas luzes e pela energia de cada esquina, imaginava-se sob os refletores de um grande palco, diante de um público hipnotizado. Os primeiros dias foram de entusiasmo e coragem. De uma audição a outra, Lúcia atravessava as avenidas com um sorriso no rosto, certa de que cada tentativa era um degrau a menos para a Broadway. Mas a cidade logo começou a lhe mostrar outra face. As audições eram duras, os olhares dos jurados frios, e as portas, quase sempre fechadas. "Você tem um bom timbre, mas não é o suficiente", ouviu várias vezes. E com o passar dos meses, suas economias rarearam e o sonho começou a perder o brilho. Sem opções, Lúcia passou a se apresentar em bares decadentes, com público disperso e rostos indiferentes, cantando no meio do ...

O Presente

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Ana e Ricardo completariam quarenta anos de casamento em poucas semanas. Planejaram uma comemoração íntima, algo que simbolizasse o amor maduro e companheiro que construíram ao longo das décadas. Decidiram que o presente de bodas seria um quarto novo. Não apenas uma reforma, mas um verdadeiro ninho, onde poderiam se redescobrir e reviver, com desejo renovado, o amor que os uniu quando jovens. Durante meses, cuidaram de cada detalhe daquele quarto: as paredes em tons de azul calmante, a cama macia, os lençóis escolhidos a dedo, a janela ampla por onde o sol entraria para aquecer os momentos tranquilos. Ricardo, com seu senso de humor de sempre, brincava que o quarto seria “o templo do amor maduro”, enquanto Ana ria, vislumbrando os próximos anos ali, em harmonia e paz. O novo quarto seria o começo de uma nova fase. Porém, a vida lhes reservou uma surpresa amarga e devastadora. A poucos dias das bodas, Ricardo sofreu um mal súbito. O golpe foi rápido e fatal. Em questão de minutos, Ana v...

Boa Sorte

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Joice segurou a respiração quando ouviu o som de um carro na rua, correndo para a janela na esperança de ver o velho carro azul de Jonas. Suspirou profundamente. Não era ele. O carro, desbotado pelo tempo, estava ausente como o próprio marido, que nunca se atrasava sem antes avisar. Preocupada, Joice sentiu seu coração afundar – onde estaria Jonas? Ele não costumava sumir sem explicações. Jonas era um comerciante ambulante, jovem e cheio de sonhos. Vivia na estrada, viajando de cidade em cidade para vender os produtos que trazia de um país vizinho. Sentia orgulho da profissão que escolhera, que além de lhe render um sustento, trazia-lhe histórias e amizades. Joice e ele se conheceram durante uma dessas viagens; o romance foi rápido e intenso. Em pouco tempo, decidiram compartilhar a vida, e Joice logo engravidou. O casal foi abençoado com Clarice, uma menina especial que passou a ser o centro do mundo de Joice. Dedicando-se integralmente à filha, Joice acabou esquecendo de ser esposa, ...

O Rei e as Plebeias

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Joelma e Jussara eram apaixonadas pelo Rei Roberto. A casa delas era um verdadeiro santuário, repleta de cartazes, fotos, revistas e até algumas raridades com o rosto e a assinatura do Rei. Conheceram-se em um show, numa cidadezinha próxima. Foi um encontro que parecia obra do destino, pois as duas tinham algo em comum mais forte que qualquer laço: o amor pelo Rei. Entre vozes e gritos da multidão, encontraram uma à outra e, desde então, tornaram-se inseparáveis. Trabalhavam como empregadas domésticas em casas de famílias “da alta”, ao contrário de muitas colegas que moravam nas casas onde trabalhavam, as duas decidiram alugar uma casinha só para elas. Afinal, a liberdade era fundamental. Queriam viver sua admiração pelo Rei da forma mais autêntica possível, sem amarras ou julgamentos. Juntavam cada centavo para comprar CDs, DVDs e ingressos para os shows, que, segundo elas, “custavam o olho da cara”, mas valiam cada centavo. Porque o Rei, como sempre diziam, “não era só um cantor, era...

Amor demais é fraude

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A família Frescura parecia perfeita: pai, mãe e dois filhos adolescentes, Carmela e Pedro. Jussara, a mãe, havia deixado os estudos de lado para se dedicar ao casamento e à criação dos filhos, enquanto Ariovaldo, o pai, trabalhava dia e noite para dar o melhor à sua "família perfeitinha." O casal mantinha a harmonia e a felicidade por muitos anos, mas, com o crescimento dos filhos, esses começaram a perceber que aquela perfeição tinha algo de estranho. Era amor demais, uma felicidade impecável demais para ser verdadeira. Na escola, Carmela e Pedro ouviam os relatos dos colegas sobre os altos e baixos de suas famílias, e a experiência alheia começava a soar mais interessante do que a estabilidade dos Frescura. A melhor amiga de Carmela, Iarinha, era sempre paparicada por todos. Passava pela fase “rebelde”, com olheiras profundas e roupas amassadas, resultado da recente separação dos pais. Para Carmela, isso era "o auge": pais separados, uma rotina caótica, um “drama”...

Apenas um beijo

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Era trinta e um de dezembro de dois mil. Todos, eufóricos, subiam e desciam a Avenida de Copacabana, numa alegria contagiante. Nessa noite especial, a cidade parecia envolta por uma atmosfera de esperança e renovação. A ordem era ser feliz, era se permitir acreditar em dias melhores. Pessoas caminhavam sozinhas ou em grupo, vestidas de branco ou com roupas claras, adornadas por flores e detalhes coloridos nos cabelos. Sorrisos largos enfeitavam rostos que brilhavam tanto quanto os fogos que começavam a explodir no céu. Um ano novo, um novo século. O brilho das estrelas misturava-se ao espetáculo pirotécnico sobre as águas de Copacabana, criando um ambiente de magia e harmonia. Era um momento em que diferenças pareciam se desfazer: os moradores dos luxuosos apartamentos da charmosa avenida se “misturavam” com aqueles que desciam as ladeiras das comunidades, todos em busca daquela energia única e cheia de esperança. No meio dessa multidão festiva, um homem e uma mulher caminhavam, alheio...

Sem identidade

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“Seis horas da manhã do dia 7 de abril de 2007, o dia será ensolarado, com previsão de pancadas ao anoitecer.” O homem é acordado com essas informações. Espreguiça-se, sente na pele a sensação do tecido de algodão com leve aroma de lavanda. De súbito, senta-se na cama e olha o aposento. Não reconhece nada. Sacode a cabeça para espantar a sensação de torpor. Fecha os olhos, esfrega-os com as mãos na tentativa de acordá-los. Percebe que já está acordado e que não está sonhando, como imaginava. Encontra-se em um lugar totalmente desconhecido. Cuidadosamente, procura no pequeno quarto algo que o ajude a lembrar-se de si mesmo. Quem é, o que faz, onde está. Fica sem respostas para todas e qualquer pergunta. Sente-se à beira de um abismo: não sabe se volta a dormir, na esperança de acordar com as ideias no lugar, ou se levanta em busca de si mesmo. Na penumbra do quarto, bem ao lado da cama, sobre o criado-mudo, encontra um retrato. Nele, vê um homem moreno, de olhos escuros, abraçando, bem ...

Na chuva

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A chuva caía densa sobre a Avenida Paulista, transformando as luzes da cidade em reflexos borrados e multicoloridos. Em meio ao movimento frenético das pessoas, uma mulher andava devagar, os olhos sem direção, como se o mundo ao redor não passasse de um cenário embaçado. Era sempre na chuva que ela encontrava o lugar para seu lamento. Ali, ninguém podia distinguir as lágrimas da água que escorria pelo seu rosto. Júlia havia dedicado anos de sua vida a um homem que, pensava ela, lhe seria grato, fiel e verdadeiro. Vinha de uma família próspera, e, movida pelo amor, quis compartilhar o que tinha com ele. Para Pedro, proporcionou uma vida confortável, viagens, a casa aconchegante e tranquila que ele sempre desejou – ou assim dizia. Porém, em uma manhã fria e seca, ele foi embora sem aviso, sem uma explicação razoável, deixando Júlia perdida, com o coração estilhaçado e a sensação de que havia sido apenas uma peça num jogo cruel. Aquele homem que ela amava se tornara uma sombra de ingratid...

Asas para sonhar

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Emília era uma jovem babá de uma família rica. Chegava todos os dias sete horas da manhã à grande casa de portas largas e janelas sempre abertas para o mundo. Lá dentro, era cercada por móveis luxuosos, peças raras de lugares exóticos e fotografias que contavam histórias de viagens para os destinos mais longínquos. Paris, Tóquio, Cairo, Rio de Janeiro, Veneza… Os olhos dela brilhavam ao passar pelos corredores da casa, absorvendo cada detalhe, como se cada fotografia e cada objeto lhe revelassem um mundo que, até então, só existia em sua imaginação. Desde pequena, Emília sentia uma vontade inquietante de explorar, de conhecer o mundo além dos limites do bairro onde crescera. Mas, diferente da família que ela atendia, seu orçamento era limitado e suas responsabilidades, muitas. Suas “viagens” eram os passeios com as crianças no parque próximo ou nas idas à praça do mercado. Cuidar dos pequenos era algo que ela adorava, mas, por dentro, aquele desejo adormecido de voar parecia ganhar mai...