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Mostrando postagens de dezembro, 2024

Sorriso de Marta

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Na cidade de Áurea do Norte, Marta Resendes era o tipo de mulher que sabia tudo sobre tudo — e um pouco mais. A enciclopédia ambulante da cidade conhecia o passado das famílias, as traições encobertas, as fraudes nos comércios e até as senhas de Wi-Fi dos estabelecimentos locais. Em Áurea, ninguém sobrevivia sem passar, mais cedo ou mais tarde, pelo crivo de Marta. Aos 52 anos, ela não era rica, bonita ou simpática, mas tinha algo que poucos possuíam: o controle absoluto da informação. Como fazia todas as manhãs, Marta ocupava a mesa central da padaria, seu “escritório informal”. Ali, em meio ao aroma de pão fresco e café passado na hora, ela oferecia sua sabedoria como quem distribui bênçãos. — Marta, você sabe quem anda falando mal do meu filho na escola? — Dona Iraci perguntou, aflita, enquanto segurava seu pacote de sonhos. Marta ergueu os olhos do caderno de capa grossa, repleto de anotações indecifráveis, e com um amedrontador sorriso de canto de boca respondeu: — Iraci, querida,...

Famílias Mononucleares

 O conceito de família tem atravessado profundas transformações ao longo das épocas. Historicamente, a família foi vista como um núcleo composto por pais e filhos, representando uma estrutura coletiva essencial à organização social. Contudo, à medida que as dinâmicas sociais, culturais e econômicas evoluíram, tornou-se imperativo reconhecer a existência de formas de família que desafiam o modelo tradicional. Entre elas, destaca-se a família mononuclear, constituída por uma única pessoa. Esse fenômeno, que pode ser resultado de escolha pessoal, circunstâncias inevitáveis ou um reflexo das condições contemporâneas, carrega em si uma nova dimensão de subjetividade. A família mononuclear não é apenas a expressão de uma existência isolada, mas também uma afirmação de que o conceito de família transcende a necessidade de relações interpessoais diretas. Uma única pessoa pode ser o centro de sua própria família, com laços que se estabelecem consigo mesma, com sua história, suas escolhas ...

Eu Quero, Eu Posso, Eu Faço

 A premissa “Eu quero, eu posso, eu faço” é um convite à ação movida pela vontade genuína e pela liberdade de escolha. Ela reflete a essência de quem toma as rédeas da própria vida, decidindo agir não por obrigação ou expectativa, mas por uma força interna que valoriza o presente e os pequenos atos que transformam o mundo ao redor. O querer é o primeiro passo: um desejo que brota do coração e dá sentido ao que fazemos. Quando queremos algo de verdade, colocamos alma e intenção no que estamos prestes a realizar. Mas o querer, por si só, não basta; ele precisa ser seguido pela convicção de que somos capazes. O “eu posso” é o reconhecimento da nossa força, uma afirmação que quebra as barreiras impostas pelo medo ou pela dúvida. É onde encontramos coragem para sair do lugar. E então vem o mais importante: o “eu faço”. É no fazer que a magia acontece. É no momento em que transformamos intenção em ação, mesmo sem esperar recompensas, que nos tornamos agentes de mudança. Agir com boa ...

Num Saco de Pipoca

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Simoninha era uma dona de casa de meia-idade. Bonitinha, mas nem tanto; magrinha, mas nem tanto; boa mãe, mas nem tanto; boa esposa, mas nem tanto. Na verdade, ela sabia mesmo era enganar. Enganar muito bem. Se tinha uma coisa que Simoninha achava que era muito boa, era gostar da sétima arte. Sabia tudo sobre cinema! Quer dizer, pensando bem, nem tanto assim, já que gostava de tudo que passava no escurinho do cinema. Comédia romântica, terror, drama, desenho animado… ela não fazia cerimônia. Entrava em qualquer história com a mesma paixão de uma adolescente no primeiro crush. O cinema era seu paraíso particular. Simoninha se esbaldava, viajando nas histórias e, claro, saboreando sua paixão incondicional: pipoca. Não era qualquer pipoca. Era o pacote GG, meio doce, meio salgada, que ela carregava como um troféu. E, se por azar caía um grãozinho pelo caminho, Simoninha ficava em choque! Caminhava pela sala com ares de rainha, até se acomodar no assento, pipoca no colo, pronta para deixar...

Deixar como o outro quiser ser é libertador

Em uma sociedade que tanto preza pelo controle e pela imposição de padrões, abrir mão de moldar o outro à nossa imagem ou segundo os nossos desejos é um ato de coragem. Mais do que isso, é um gesto profundo de respeito e de amor verdadeiro. Quando tentamos mudar o outro para que se ajuste às nossas expectativas, na verdade estamos tentando preencher lacunas internas. Projetamos no outro nossos anseios, medos e carências, esquecendo que cada indivíduo é um universo próprio, com sonhos, dores e histórias que não nos pertencem. É como tentar podar uma árvore para que caiba em um vaso pequeno, ignorando que ela precisa de espaço para crescer e florescer. Deixar o outro ser como é não significa concordar com tudo ou aceitar aquilo que nos fere. Trata-se de compreender que a verdadeira conexão vem da aceitação, não da conformidade. Muitas vezes, é nesse espaço de liberdade que as relações se tornam mais autênticas, permitindo que ambos os lados floresçam em sua individualidade. Essa li...

Os " Viciados" em Controlar o Futuro

Existe um tipo peculiar de vício que raramente encontra nome nos compêndios médicos ou nas pautas dos grupos de apoio, mas que está lá, corroendo a serenidade de quem o carrega: o vício de controlar o futuro. Não são poucos os que se enquadram nessa categoria – e, ouso dizer, é provável que todos, em algum momento, já tenhamos sentido a irresistível compulsão de projetar, prever, planejar e até ditar os rumos do que sequer aconteceu. O ser humano é pretensioso. Dotado de uma mente complexa, ele se apaixona pela ideia de que pode ter as rédeas do tempo e da vida. No entanto, o futuro é como um rio indomável: não importa o quanto tentemos represá-lo ou guiá-lo, ele sempre encontra seus próprios caminhos. E quando essa realidade se impõe, o corpo reage com uma descarga de adrenalina negativa – a frustração, o medo e, às vezes, o desespero, capazes de nos autodestruir. Eu me incluo nessa lista. Confesso que sofro quando a vida, teimosa, insiste em escapar do script que imaginei. A angústia...

Confessionário Silencioso

 Quando a noite se estende e o sono se recusa a chegar, o travesseiro se transforma em algo mais do que um simples suporte para a cabeça cansada. Ele se torna nosso confessionário silencioso, o ouvinte fiel de nossos pensamentos mais profundos e inconfessáveis. Deitamos e as ações do dia começam a desfilar em nossa mente, como um filme que não pedimos para assistir, mas que insiste em ser projetado. As palavras ditas, os gestos feitos, os momentos de omissão ou coragem, tudo reaparece, buscando um lugar na nossa consciência. O travesseiro é o palco onde esse teatro interno se desenrola, e nós somos tanto os atores quanto os espectadores. É nele que ponderamos sobre as vezes em que fomos impacientes, as palavras que poderiam ter sido ditas com mais ternura, ou aquelas que deveriam ter sido engolidas. É também ali que celebramos as pequenas vitórias, os gestos gentis que fizeram diferença, os sorrisos que conseguimos provocar. O travesseiro é imparcial; ele não julga. Mas, ao m...

O Mar Como Meu Anfitrião de Vida

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Nasci longe do mar. Para onde quer que eu olhasse, era o horizonte de campos e morros que me acolhia, vastos e ondulados, quase como se fossem ondas de terra. Meu universo era moldado pelo vento que sussurrava entre as folhas, pelo aroma de terra molhada e pela simplicidade das paisagens que pareciam abraçar a alma com sua quietude. Mas algo em mim ansiava por mais. Uma vastidão que eu não sabia nomear, mas que me habitava desde sempre. Meu primeiro encontro com o oceano foi tardio. Eu tinha quatorze anos quando o vi pela primeira vez, em uma viagem que prometia aventuras e revelou algo maior: um chamado que eu ainda não compreendia. Lembro-me daquele momento como se estivesse acontecendo agora. A brisa salgada tocou meu rosto com uma intimidade inesperada, quase como se conhecesse cada recanto de quem eu era. O som das ondas ecoou no meu peito como um coração que sempre estivera ali, esperando para ser reconhecido. E a vastidão azul diante de mim parecia mais um convite do que um simp...

A Ordem Natural das Coisas

 Na vastidão da natureza, tudo parece obedecer a uma ordem harmoniosa, regida por ciclos imutáveis. O inverno chega após o outono, anunciando o repouso da terra, e a luz do sol sucede a quietude da lua, marcando o ritmo dos dias. Os rios fluem em direção ao mar, cumprindo seu destino sem hesitação. É como se houvesse uma sinfonia invisível, onde cada elemento desempenha seu papel, contribuindo para a serenidade do todo. Contudo, a presença do ser humano, o único ser dotado de raciocínio lógico, frequentemente rompe essa paz. Com sua capacidade de criar e transformar, ele intervém no equilíbrio natural, modificando ciclos que antes pareciam imutáveis. Muitas vezes, essas intervenções trazem consequências desastrosas, alterando o que deveria seguir seu curso natural. Ainda assim, nem toda dissonância provém da ação humana. Existem acontecimentos que desafiam nossa percepção do que seria a ordem natural, causando dor e perplexidade. Um dos exemplos mais dilacerantes é a morte de u...

A Finitude das Coisas

 A finitude das coisas é uma verdade que atravessa a existência humana como um rio silencioso. Tudo é perecível, desde o frescor das manhãs de primavera até as memórias que cultivamos no silêncio de nossa mente. Porém, essa realidade não é necessariamente um peso a ser carregado, mas um convite à reflexão, à celebração, à compreensão do que significa estar vivo. As coisas que amamos, as pessoas que habitam nossas vidas e os momentos que nos arrebatam estão inevitavelmente atrelados à impermanência. Não há como fugir do fim, mas podemos escolher como percorrer o caminho até ele. Nesse percurso, aprendemos que a finitude não tira o valor das experiências vividas; pelo contrário, é o que lhes confere significado. A consciência da finitude nos ensina a olhar para o agora com maior intensidade. Sabemos que as coisas passarão — as flores murcharão, os risos se dissiparão no ar, os abraços um dia serão apenas memórias — e é exatamente por isso que cada um desses momentos é tão precios...

Voltando para o Ninho

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Há 80 anos, nasceu Arthur, fruto de um relacionamento que unia conveniência e aparências mais do que amor. Sua mãe, Helena, uma mulher de espírito livre presa às amarras de um casamento arranjado, recebia a notícia da gravidez com um misto de angústia e resignação. Naquele ventre, que deveria ser um ninho acolhedor, Arthur crescia cercado por rejeição e expectativas impostas antes mesmo de abrir os olhos para o mundo. Quando finalmente veio ao mundo, Arthur não encontrou os braços ternos da mãe, mas sim o colo prático e eficiente de uma babá. Assim se desenrolou sua infância: casa cheia de empregados, sorrisos calculados, e a ausência constante de Helena, que parecia fugir daquilo que ele simbolizava. Ainda assim, Arthur cresceu, moldado mais pela falta do que pelo excesso de atenção. Na juventude, Arthur decidiu que sua vida seria uma odisseia pela busca do pertencimento. Mergulhou de cabeça nos estudos, tornou-se um profissional brilhante, acumulou fortuna e formou uma família digna ...

Caminho Sem Volta

Todos seguimos para um fim. Essa verdade incontornável é o que nos une como seres humanos, independentes de nossas escolhas, crenças ou origens. A vida, em sua essência, é uma caminhada sem volta. Cada passo que damos nos leva para frente, em direção a um horizonte que não podemos prever completamente, mas que sabemos ser inevitável. Essa caminhada tem um sabor agridoce. Por um lado, há a beleza de cada instante vivido – o sol que se põe após um dia exaustivo, o sorriso sincero de quem amamos, o som da chuva na madrugada silenciosa. Por outro lado, há o peso da impermanência, a consciência de que cada momento, por mais precioso que seja, é também efêmero. Ao longo desse trajeto, carregamos nossas bagagens. Algumas são leves e cheias de lembranças felizes; outras, pesadas, recheadas de dores, perdas e arrependimentos. Mas, inevitavelmente, todos somos forçados a aprender a lidar com elas. É nesse aprendizado que encontramos sentido – talvez não na chegada, mas no ato de caminhar. ...

A Melhor Amiga que Sempre Esteve Lá

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Alice era uma mulher de 34 anos, apaixonada por livros e por longas caminhadas nas manhãs ensolaradas. Sempre introspectiva, carregava um misto de serenidade e mistério. Aos olhos do mundo, Alice parecia levar uma vida comum. Trabalhava como bibliotecária em uma pequena cidade, gostava de cozinhar e cuidava de um gato chamado Sebastian. Mas, dentro dela, existia um universo inteiro de diálogos, ideias e descobertas que compartilhava com sua melhor amiga: ela mesma. Desde pequena, Alice tinha o hábito de conversar consigo mesma. Enquanto outras crianças formavam amizades no parquinho, Alice sentava sozinha sob uma árvore, entretida em um debate interno sobre o céu, as nuvens ou os contos de fadas que havia lido. No começo, seus pais ficaram preocupados, mas, ao perceberem que Alice estava feliz e saudável, passaram a encarar isso como parte de sua singularidade. Na adolescência, o mundo interno de Alice se expandiu. Era como se houvesse outra versão dela, uma amiga sábia, espirituosa e ...

Um Lado da Lua

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Ana e Sônia se conheceram aos sete anos, no pátio de uma escola empoeirada de uma pequena cidade. Desde então, compartilhavam o que chamavam de "um lado da lua", uma metáfora inventada para descrever segredos, risos e confidências que só elas conheciam. Durante décadas, a vida foi um emaranhado de telefonemas diários, viagens improvisadas e apoio mútuo nos momentos difíceis: o divórcio de Ana e o luto de Sônia pela morte de um filho. Unidas, eram como dois pilares sustentando um templo invisível. Quando completaram 70 anos, Ana começou a notar sutis mudanças em Sônia. De início, eram apenas esquecimentos: um compromisso aqui, uma data ali. Mas, com o passar dos meses, as alterações tornaram-se mais profundas. Sônia, outrora conversadeira e espirituosa, agora soltava frases desconexas, e seu humor oscilava entre doçura infantil e irritação inexplicável. Ana a acompanhou a uma consulta médica, sentindo no peito o peso de um presságio. O diagnóstico veio como um golpe: demência ...

Escutando o Silêncio

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A casa de madeira do século passado erguia-se no alto de um pequeno morro, ladeada por árvores antigas que guardavam segredos em suas copas robustas. O casario, com seu sótão que sussurrava memórias e um porão que exalava mistério, parecia respirar em silêncio. As janelas de vidros ondulados refletiam ora o sol, ora a melancolia do entardecer, criando jogos de luz que dançavam pelas paredes internas. Ali vivia um casal de meia-idade, sem filhos, envoltos em uma rotina onde as palavras haviam aprendido a se aquietar. Ela, professora de artes, tinha as mãos manchadas de tinta e o olhar que enxergava poesia nas formas mais banais. Ele, professor de literatura, era um colecionador de palavras, mas as guardava para as aulas, onde suas ideias ganhavam vida. Em casa, o silêncio reinava como um visitante constante, não imposto, mas acolhido. Os dois costumavam dividir o mesmo espaço em cumplicidade muda. Ela sentava-se perto da janela da sala, pincelando telas com cores que refletiam suas emoç...

Brincar de Viver

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Ana e Miguel se conheceram na juventude, quando ambos tinham a vida inteira à frente, como um campo aberto sob o céu azul. Ele, amante da música, carregava um violão para todo lado, dedilhando melodias que encantavam todos ao redor. Ela, leitora voraz, sempre com um livro de poesias em mãos, tinha a habilidade de transformar qualquer silêncio em algo poético. Suas diferenças os aproximaram. Ana encontrava música nas palavras, enquanto Miguel encontrava poesia nas notas. No início, tudo era novidade. O primeiro beijo, sob a luz tímida de um poste na pracinha da cidade, foi acompanhado por uma canção que Miguel improvisou no violão. "Essa é só sua, Ana", ele disse, piscando de forma marota. Era assim que ele a conquistava: com melodias e gestos simples, mas cheios de significado. Juntos, construíram um universo onde a rotina era uma dança entre as notas dele e as palavras dela. Casaram-se cedo, antes mesmo de completarem 25 anos, e criaram uma vida recheada de momentos especiai...

Cartas na Mesa

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O cassino fervilhava com o som das fichas e o riso abafado dos jogadores. Era uma noite comum na cidade costeira, aquela que florescia no verão e, no inverno, se perdia em um esquecimento frio. Mas naquela noite, algo diferente pairava no ar, como algo mágico fosse acontecer e ninguém ali sabia explicar — e então, ela apareceu. A imponente porta de vidro do cassino se abriu, e todos se voltaram ao mesmo tempo, como que atraídos por uma força invisível. Ali estava uma mulher. Morena, de beleza cortante e enigmática, cabelos negros e sedosos que deslizavam sobre suas costas desnudas...a morena era dona de olhos negros com um olhar que parecia atravessar a alma de quem se atrevesse a encará-la. Seus passos eram lentos e graciosos, e ao mesmo tempo precisos e determinados , como se ela flutuasse sobre o chão coberto de mármore. Vestia um longo vestido negro, que parecia escorregar pelo seu corpo como uma sombra, delineando cada movimento. E cada curva de seu corpo. O longo e delgado pescoç...

Procurando pelos Domingos

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Havia algo definitivo nos domingos desde que Bela se viu sozinha. Um silêncio espesso pairava no ar, pesando como a neblina das manhãs de inverno. Era o dia em que o vazio ocupava todos os cantos da casa e do coração, lembrando-a, sem piedade, de tudo o que havia perdido. Domingos costumavam ser os dias preferidos dela e de Miguel. Ele fazia questão de preparar o café da manhã com panquecas, um ritual tão simples quanto especial. Depois, passeavam pelo mercado da cidade, comprando frutas frescas, flores para a semana e, sempre, um pequeno mimo inútil que acabava esquecido em algum canto da casa. À tarde, o sofá os acolhia enquanto liam ou assistiam a filmes antigos. O mundo parecia suspender sua pressa aos domingos. Agora, os domingos eram outra coisa. Não havia panquecas, nem flores, nem a risada de Miguel preenchendo o espaço entre uma conversa e outra. Ela sabia que não podia continuar assim. Perder um amor era como perder uma parte de si, mas deixar os domingos se perderem junto pa...

Posso Chamar Você?

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Joaquim acordava todos os dias com o peso de um vazio que não sabia nomear. Desde que Helena se fora, o mundo parecia ter perdido suas cores. Eles tinham compartilhado uma vida inteira – risos, silêncios, brigas e reconciliações, sonhos realizados e outros tantos adiados. Agora, ele se via sozinho, cercado por móveis e objetos que carregavam lembranças demais e um silêncio que lhe gritava ao ouvido. Ele não sabia mais como atravessar os dias. O café parecia amargo, o jornal que lia há décadas já não fazia sentido, e o relógio na parede era um lembrete cruel de que o tempo seguia sem piedade. Os ponteiros avançavam, mas Joaquim parecia parado em um instante congelado – o momento em que Helena partira. Uma noite, sem conseguir dormir, ele resolveu vasculhar o sótão, um lugar onde Helena costumava guardar coisas que chamava de “relíquias de vida”. Entre caixas de fotos, cartas amareladas e álbuns de viagem, Joaquim encontrou uma pequena gravação em um antigo gravador. Tremendo, pressionou...

Os Fios do Tempo

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1. O Silêncio de Helena Helena sentou-se no sofá da sala com o álbum de fotos no colo. Fazia seis meses desde que Pedro partira. O silêncio da casa parecia pesado, mas ela se recusava a preenchê-lo com música ou televisão. Cada página virada do álbum trazia memórias de um amor de décadas. Helena questionava a lógica do tempo. "Por que tanto agora para tão pouco depois?" Certo dia, ao caminhar pelo mercado, ela notou uma barraca vendendo vasos artesanais. Os desenhos gravados em cada um eram únicos, como histórias contadas na cerâmica. Impulsionada por uma lembrança de Pedro apreciando trabalhos manuais, comprou um vaso para o jardim. Lá, plantou uma muda de lavanda, pensando: “Talvez o tempo me mostre algo aqui.” Numa tarde de setembro, enquanto regava as plantas, percebeu uma pequena flor roxa brotando em meio ao canteiro seco. Era uma semente que Pedro plantara anos antes, sem nunca ver o resultado. Pela primeira vez em meses, Helena sorriu. O tempo, pensou, às vezes guar...

Sob o Céu do Jardim

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O batizado de Maria Clara acontecia em uma tarde ensolarada, no jardim da casa da família. Flores coloridas enfeitavam o espaço, o perfume de lavanda e rosas misturava-se ao cheiro dos doces finamente dispostos na mesa. Todos pareciam felizes, unidos pela celebração daquele momento único. A mãe, Ana, irradiava felicidade ao lado do marido, Eduardo, enquanto segurava Maria Clara nos braços. Amigos e familiares circulavam, brindando, sorrindo, eternizando o dia em fotos. Tudo transcorria como um sonho. No entanto, em meio aos sorrisos, um clima de tensão imperceptível pairava no ar. Ana sentia, embora não soubesse explicar, como se algo pudesse mudar a qualquer momento. Ela ignorou esse pensamento, atribuindo-o ao cansaço da organização do evento. Então, o momento chegou. No meio das risadas e conversas, os portões do jardim se abriram com um ranger. Todos voltaram os olhos para a mulher que entrava. Ela tinha o semblante fechado, os passos firmes. No colo, segurava uma criança de cerca ...