Dona Alzira e o Último Brilho da Bola de Cristal

Na rua do Mercado Velho, entre uma relojoaria decadente e uma papelaria sempre vazia, havia uma porta roxa desbotada com uma placa escrita à mão: “Dona Alzira – leio o que você ainda não sabe.” Gente de toda parte vinha ouvir as previsões da velha mulher de olhos pequenos e cabelos presos num coque frouxo. Uns saíam céticos, outros em lágrimas. Mas todos, sem exceção, sentiam que ela sabia de algo – mesmo que não soubessem o quê.

Dona Alzira jurava que não era charlatã. Dizia que a bola de cristal não lhe mostrava imagens nítidas, mas tremores no tempo, lampejos, intuições. Nunca prometeu certezas – apenas vislumbres. Ainda assim, acertava aniversários esquecidos, paixões secretas e pequenas “desgraças”.

Por anos, sustentou sua fama no fio entre o mistério e o acaso.

Até que, numa tarde chuvosa, chegou um homem alto, com cheiro de coisa antiga, e pediu uma leitura. Não disse seu nome. Só se sentou, tirou o chapéu e olhou para a bola como quem encara um espelho. Dona Alzira hesitou. A bola tremeluziu, brilhou como nunca e, então... escureceu. De súbito. Sem aviso. Como uma lâmpada queimada ou um olho que se fecha.

Naquela noite, Dona Alzira não dormiu. Sentiu que havia visto algo – mas não conseguia lembrar o quê.

Dias se passaram. A bola continuava muda. Nenhum brilho. Nenhum lampejo. Os clientes vinham e iam, e ela só podia inventar o que não via. O que antes era intuição agora era invenção. Sentia-se vazia. Ou pior: sentia-se comum.

Foi então que o telefone tocou. Uma voz trêmula, do outro lado, disse:

– Mãe?

Era a filha que ela abandonara ainda bebê, há mais de cinquenta anos, num gesto de desespero e medo. A menina – agora mulher – a havia encontrado por um acaso improvável: uma notícia num jornal sobre “a vidente da Rua do Mercado Velho” Uma foto embaçada. Uma dúvida no coração que virou coragem.

Naquela tarde, mãe e filha se olharam por minutos inteiros sem dizer nada. O tempo parou. O futuro? Irrelevante.

O passado? Incompleto.

Mas o presente... ah, o presente explodiu em choro e abraço. Um milagre sem premonição.

A bola de cristal nunca mais brilhou. Mas Dona Alzira nunca mais precisou dela.

Porque muitas vezes, o destino não se anuncia. Ele chega de mansinho, muda tudo – e silencia até bolas de cristal.



Silvia Marchiori Buss

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