Avatares de nós
Alice sempre foi uma menina diferente. Aos 16 anos, ingressou na faculdade de biologia, fascinada pelo mistério da vida, mas também atormentada por uma pergunta que ecoava em seu coração desde muito cedo: por que tantas perdas? Criada em uma família católica, cresceu ouvindo explicações divinas para cada ausência, cada dor, mas elas nunca a satisfizeram. Seu pai, seu grande herói, partiu cedo, deixando um vazio que as respostas religiosas não conseguiam preencher. A cada nova perda, seja de um ente querido ou de um sonho desfeito, Alice se perguntava se havia algo mais profundo, algo que escapava à compreensão comum.
A biologia parecia ser o caminho para entender, afinal, era a ciência da vida. No entanto, ao mesmo tempo que se encantava com o estudo das células, dos ecossistemas, da evolução, Alice sentia uma lacuna crescente. A vida era bela, mas também frágil. Por que nascemos, vivemos e, inevitavelmente, morremos? Como entender a efemeridade de tudo que nos cerca, quando parece que o sofrimento permeia cada canto do mundo?
Muito jovem, Alice casou-se e teve filhos. Por um tempo, a
rotina a afastou dessas questões existenciais. Os risos de seus filhos e o
calor de seu marido lhe deram um breve alívio, como se, por um instante, a vida
fizesse sentido. Mas o fantasma da perda nunca esteve longe. Em seus momentos
de quietude, Alice voltava a pensar nas guerras, na maldade humana, no
sofrimento incessante que via ao seu redor. O que fazia com que tudo isso
valesse a pena?
Foi numa viagem com a família para a Disney que algo dentro
dela começou a despertar de uma nova maneira. Alice conheceu o conceito de
avatar. Aquilo acendeu uma faísca em sua mente. Avatares. Personagens que
criamos, corpos que habitamos, mas que não são quem realmente somos. Ela pensou
no quanto, ao longo da vida, as pessoas pareciam desempenhar papéis. Ela mesma,
por exemplo, era filha, mãe, esposa, cientista – mas isso definia quem ela era
de verdade?
Quando mais uma perda significativa a atingiu, o fio que a
conectava ao mundo que conhecia começou a se romper. Seu marido, seu grande
amor, partiu numa manhã ensolarada de setembro, quando o sol substituía a lua
cheia no céu. Alice sentiu sua energia se esvair com a dele. A presença dele,
que antes era uma âncora, agora era uma ausência insuportável. Ela se viu mais
uma vez perdida, à deriva em um universo que parecia indiferente às suas
perguntas.
Mas, desta vez, algo mudou. Em meio à dor, sua mente, sempre
questionadora e reflexiva, começou a desenhar uma teoria que mudaria tudo. E se
a vida que conhecemos fosse apenas um ensaio? E se nossos corpos, nossas
personalidades, fossem avatares, criados para desempenharmos um papel aqui,
neste mundo? Talvez estejamos aqui para aprender, crescer, formar laços, mas
tudo isso seria apenas uma preparação para algo maior. Em outra galáxia, em
outro plano, viveríamos como seres plenos, sem mais máscaras, sem mais
avatares. Lá, seríamos nós mesmos em nossa essência mais pura, livres das
limitações que nos prendem aqui.
Alice imaginava que, quando nossa energia neste mundo se
esgota, não é o fim. É um resgate. Deixamos para trás o avatar que criamos, a
vida que ensaiamos, e seguimos para um lugar onde a verdadeira vida começa. Lá,
reencontraríamos aqueles que amamos, não mais em corpos frágeis e mortais, mas
como seres completos, plenos de energia, em um universo onde não há perdas.
Com essa nova visão, Alice passou a viver de forma
diferente. Sabia que a vida aqui era breve, mas isso a fez valorizar cada
momento com seus filhos, com seus amigos, com a natureza ao seu redor. Ela
ainda não tinha todas as respostas – talvez nunca tivesse –, mas aceitou o
mistério. E, acima de tudo, aceitou que este mundo era apenas uma parte de uma
jornada maior.
Alice sabia que, um dia, sua energia também se apagaria. E,
quando esse momento chegasse, ela estaria pronta para deixar seu avatar e
seguir para o lugar onde, finalmente, seria quem sempre foi.
Silvia Marchiori Buss
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